3x4: Kalyne Almeida

Um pouco da trajetória de vida, militância e arte de uma das principais mulheres do audiovisual paraibano

Conhecida nas rodas de conversas, bares, cirandas, ciclovias, salas de aula, debates e embates da militância cultural, Kalyne Almeida é uma mulher de muitas facetas e de atuação polivalente: cineasta, produtora, jornalista, radialista, professora universitária, fotógrafa, pesquisadora, ativista e cantora nas horas de descontração e fruição. De família vinda do Sertão, nascida na capital paraibana, ela logo cedo aprendeu o que era responsabilidade ao atuar como assistente da mãe, aos 13 anos, numa escola.

Aos 16 anos, ingressou no curso de biblioteconomia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), mas seu interesse desde sempre foi a área da comunicação. “Nessa época você tinha duas opções de curso e eu acabei entrando na minha segunda, sendo que a primeira era jornalismo e eu já fui pagando algumas disciplinas do curso antes de entrar”, explica ela sobre sua experiência universitária precoce e o desejo de atuar como jornalista.

Poucos anos depois, seu desejo de estudar comunicação se concretizou, mas num outro curso, o de Rádio e TV. Foi através dele que seu interesse por cinema cresceu e se desenvolveu, numa época em que boa parte das figuras que seriam o futuro da cena audiovisual pessoense frequentava esse mesmo espaço: Kalyne foi colega e contemporânea de nomes como os cineastas Diego Benevides, Luís Barbosa, Gian Orsini, com quem viria trabalhar em diversos projetos.

Mas foi através de um cineasta consagrado, funcionário de carreira da UFPB, que Kalyne teve seu primeiro contato com produção de cinema profissional, na assistência de direção do documentário Jaguaribe — o Rio das Onças, telefilme dirigido por Marcus Villar para a TV Universitária, quando ela já estava perto de concluir a graduação em Rádio e TV.

A experiência com a universidade abriu os horizontes de Kalyne e trouxe a possibilidade trabalhar com cinema, algo que ela nunca havia prospectado, mas que a “fisgou” como uma paixão que terminou por ser um eixo de vida. “Sou muito grata ao curso de Comunicação, aos meus mestres, aos meus professores por terem me incentivado e por terem me mostrado caminhos e possibilidades na comunicação e no cinema, para além do que eu imaginava. Aliás, sou grata ao ensino superior público!”, defende ela.

Uma das poucas mulheres do circuito audiovisual da Paraíba e de João Pessoa, foi por meio de uma oficina de roteiro e produção direcionada para mulheres que ela produziu seu primeiro filme como diretora, o curta A Ruga (2012), sobre o processo de envelhecer na perspectiva de uma mulher. Um ano depois, lançou Diva: vozes femininas, documentário sobre uma mulher que encontra na arte e no apoio de outras mulheres uma forma de sair de uma situação de violência doméstica. O filme foi premiado com o segundo lugar no Primeiro Concurso de Curta Documentário sobre a Lei Maria da Penha, promovido pelo Congresso Nacional do Brasil, TV Câmara e Banco Mundial.

A cineasta Kalyne Almeida e a atriz mirim Maria Alyce, nos bastidores das filmagens de Velhos Tempos (2016)

Em 2016, lançou seu trabalho mais premiado, o curta de ficção, Velhos Tempos, que aborda a violência simbólica contra a mulher num contexto de relacionamento abusivo. No início de 2017, filmou Aponta Pra Fé, um curta-metragem de ficção feito no Porto do Capim, território tradicional do Centro Histórico de João Pessoa, com ampla participação da comunidade. Esse filme acabou se ramificando e virou um longa que será lançado ainda esse ano. Também para 2020 está previsto o lançamento de Raiz, curta sobre feminilidade e ancestralidade, produzido de forma colaborativa para a exposição “Ser Mulher”, projeto da Estação Cabo Branco, organismo cultural vinculado à prefeitura da capital paraibana.

Paralela a sua atuação como diretora, Kalyne teve intensa atuação como produtora e produtora executiva de diversas produções audiovisuais, tendo se tornada uma das profissionais de referência na Paraíba nessa função.

Como realizadora, sua obra é atravessada pelas questões de gênero, com o feminino no centro abordagem. Essa associação entre cinema, feminismo e articulação política também pauta a pesquisa de doutorado que ela está desenvolvendo, voltada para o cinema urgente produzido por mulheres na comunidade do Porto Capim enquanto um exercício de cidadania cultural.

Sobre essa centralidade temática, Kalyne ressalta que tendo a trajetória que teve e ocupando o lugar que ocupa, isso é imperativo na vida dela e na sua cinematografia. “Eu entendi que é importante ter o meu lugar de fala enquanto mulher cineasta, de proporcionar voz às outras mulheres: é importante o meu lugar de fala e o meu posicionamento. Meu e de todas as mulheres cineastas, artistas que, de alguma forma, colocam em sua arte simbologias do universo feminino”, defendeu.

O Curta Curtas conversou com Kalyne Almeida sobre sua filmografia, a experiência de ser uma mulher num meio dominado pelos homens e pelo machismo, seu primeiro longa, perspectivas estéticas e vários outros temas.

“É importante contarmos nossas histórias, sermos líderes de equipe, escrevermos nossos roteiros. Enfim, no cinema, só se reflete o que a sociedade é/está: patriarcal e machista. Mas eu busco contribuir para essa mudança: por isso coloco a cara á tapa, vou e faço, mesmo sem as condições ideais. Faço um cinema urgente.” | Kalyne Almeida

Curta Curtas: Você teve contato com produção audiovisual através do curso de Rádio e TV da UFPB, mesmo caminho de cineastas como Ana Bárbara Ramos, Gian Orsini, Luís Barbosa, João Paulo Palitot dentre outros da cena da capital paraibana. Fala pra gente como foi essa iniciação.

Kalyne Almeida: O curso de comunicação me mostrou possibilidades para além do que eu já imaginava exercer como profissão. Desde muito nova, eu sabia que iria viver viajando e filmando. Mas eu imaginava que seria com o jornalismo. Contudo, no terceiro período de comunicação eu fui despertada por algumas disciplinas e incentivada por alguns professores a focar no audiovisual e no documentário. É muito importante o incentivo dos professores e o olhar individual para cada aluno. Um dos professores olhou para mim e disse: “vá fazer documentários, você tem talento para isso” e cá estou.

Depois, fiz meu primeiro roteiro de longa de ficção e foi uma das melhores notas da disciplina, o que me surpreendeu… E passei a acreditar em mim enquanto documentarista e realizadora de cinema. Um tempo depois fui viver em Portugal durante um ano e estudei na Universidade de Coimbra como um intercambista e no Instituto Superior Miguel Torga. Estudei muitas disciplinas voltadas para o jornalismo, como jornalismo televisivo, Jornalismo radiofônico, além da vivência cultural que é morar em outro país. Lá, tive uma família: Dona Cesaltina e Lúcia, que me deram suporte até financeiro para me sustentar por lá.

Então, a Universidade federal da Paraíba e o curso de comunicação me deram o “tacho e a colher de pau” [risos]e o resto foi comigo. Quando terminei o curso eu já fui trabalhar numa agência de publicidade, trabalhando já com produção de audiovisual também. Sou muito grata ao curso de comunicação, aos meus mestres, aos meus professores por terem me incentivado e por terem me mostrado caminhos e possibilidades na comunicação e no cinema, para além do que eu imaginava. Aliás, sou grata ao ensino superior público!

CC: Sua obra como realizadora é atravessada pelas questões de gênero. Discutir o feminino e o papel da mulher por meio do audiovisual sempre foi algo que lhe instigou? Para além do fato de ser uma mulher cineasta, acredita que esses recortes conseguem dialogar com setores amplos da sociedade? Fala um pouco sobre isso.

KA: Sobre sempre dialogar com questões do feminino, creio que nasceu da vivência do filme A Ruga. Lá, pude aprender com outras mulheres e acho que despertou meu lugar de fala. Como consequência, há um tempo, gerei um debate sobre a mulher no cinema: não só como atriz, mas como diretora, criadora, roteirista, diretora de fotografia. Dei algumas palestras e facilitei alguns debates cobre esse tema pelo interior da Paraíba. É importante contarmos nossas histórias, sermos líderes de equipe, escrevermos nossos roteiros. Enfim, no cinema, só se reflete o que a sociedade é/está: patriarcal e machista. Mas eu busco contribuir para essa mudança: por isso coloco a cara á tapa, vou e faço, mesmo sem as condições ideais. Faço um cinema urgente.

Cena do longa de ficção Aponta Pra Fé, de Kalyne Almeida, que será lançado em 2020

CC: Antes de dirigir filmes, você participou de muitos projetos como produtora audiovisual, já tinha acumulado um currículo extenso nesse posto. Como foi migrar para a direção?

KA: Eu sempre escrevi. Desde os 9 anos de idade. Escrevia crônicas num caderninho que eu mesma fiz. Contar histórias sempre foi minha paixão. Comecei como produtora [executiva e de produção] por ter certa facilidade em escrita de projetos. E também para ter a oportunidade de trabalhar com nomes que eram e são minhas referências como Marcus Vilar. Contudo, não acho que migrei para a direção. Eu só estava esperando o tempo certo de formular algo que eu tivesse propriedade, gosto e vontade de falar. Meu mestrado é em literatura e eu sou apaixonada pela literatura oral. Eu trato meus filmes autorais como uma literatura que bebe muito da fonte da oralidade, da intuição no contar histórias, do roteiro não-canonizado, não aristotélico. Nada contra essas questões, mas meu processo autoral vem daí. E amo estar nesse local de desconstrução e de volta à gênese da narrativa. Como diretora, gosto de trabalhar signos imagéticos e sonoros. O silêncio como índice, ou o vermelho como símbolo. Amo o extracampo e criar novos planos, o que tenho chamado de não-foto. Enfim, acho que viajei um pouco nessa repostas [risos].

CC: Seu primeiro filme como diretora foi um curta chamado A Ruga (2012), sobre o tempo e seus efeitos na vida de uma mulher. O que te provocou a começar com essa temática?

KA: Passei um tempo sendo assessora de imprensa da CUFA [Central Única das Favelas] na Paraíba. Trabalhar em comunidades e com no terceiro setor sempre foi uma vontade e o impulso muito grande para mim e a CUFA me possibilitou novas visões de mundo. Através da coordenadora da CUFA na Paraíba, minha xará Kalyne Lima, em 2012, fui convidada a participar de uma oficina com Manaíra Carneiro, uma jovem diretora que mora no Rio de Janeiro. A oficina era só com mulheres, de qualquer área, eu era uma das poucas da área do audiovisual e que já tinha um pouco mais de experiência por já fazer produção e roteiro. Criamos coletivamente o roteiro de A Ruga.

Eu peguei a direção e junto com a TV Cidade João Pessoa produzimos um curta bem experimental, feminino, onde a temática era uma imersão sobre o processo de envelhecer e se enxergar uma mulher envelhecendo, num processo de envelhecimento e depois pensar: “Ok, tá tudo bem em envelhecer”.

Na verdade, eu confesso que aprendi muito com aquelas mulheres, sobretudo com as mais idosas. Muitas delas até hoje são minhas amigas. Fui despertada para o universo de construção de imagens e sons do feminino a partir daquela oficina. Só gratidão.

CC: Um ano depois de A Ruga, você lançou Diva: vozes femininas, documentário sobre uma mulher que encontra na arte e no apoio de outras mulheres uma forma de sair de uma situação de violência doméstica. O filme foi premiado com o segundo lugar no Primeiro Concurso de Curta Documentário sobre a Lei Maria da Penha, promovido pelo Congresso Nacional do Brasil, TV Câmara e Banco Mundial. Fala sobre a experiência desse filme.

KA: Como eu já tinha sido despertada para construção de audiovisual voltado para o feminino, surgiu o edital da TV Câmara Federal e do Banco Mundial. O edital era apenas para produzir um vídeo sobre a Lei Maria da Penha, que na ocasião estava com completando sete anos, e mandar para eles, aí entrei para o documentário feminino: fui ouvir algumas daquelas mulheres que participaram da Ruga, como Fernanda e Clareana, e ouvir as divas que somos! O argumento era “como a lei Maria da Penha pode nos proporcionar essa rede de apoio”. Utilizamos como símbolo o filtro dos ventos entrançado como uma rede; conseguimos uma personagem para dar o depoimento que viveu a violência doméstica e que foi acolhida a partir da lei Maria da Penha e criamos divas para alertar as mulheres que podemos, sim, buscar apoio nessa rede feminina, que existe um instrumento legal que é a lei Maria da Penha nos dando esse suporte.

Cena do documentário Divas: Vozes Femininas (2013), de Kalyne Almeida

“Queremos dialogar com o cinema de hífen, Latino-americano, queremos dialogar com outras diretoras e com realidades similares fora do nosso território nacional” | Kalyne Almeida

Mandamos o filme e para nossa surpresa fomos premiados. Eu e o então editor ganhamos a viagem para conhecer a bancada feminina de deputadas e senadoras. Teve a honra de conhecer Benedita da Silva e e de vivenciar Brasília com todos os seus problemas, mas também com todos os seus encantos. Pude vivenciar o congresso, debater com mulheres e o filme ficou circulando na TV Câmara por muito tempo.

O filme é um alerta dizendo que a lei Maria da Penha, que está em constante construção, é sim uma rede de apoio para as mulheres: os centros de referências, a delegacia da mulher, enfim, instrumentos de apoio para quem sofre violência doméstica.

Preciso dizer que esse tema gritou para mim. Foi como se fosse um chamado e passou a ser a minha missão. Os meus próximos filmes foram com essa temática porque eu aprendi muito enquanto documentarista, eu aprendi muito ouvindo aquelas mulheres. Eu entendi que é importante ter o meu lugar de fala enquanto mulher cineasta, de proporcionar voz às outras mulheres: é importante o meu lugar de fala e o meu posicionamento. Meu e de todas as mulheres cineastas, artistas que, de alguma forma, colocam em sua arte simbologias do universo feminino.

CC: Seu terceiro filme, Velhos Tempos (2016), retoma a temática da violência contra mulher, dessa vez num novo recorte: a violência simbólica. Você trabalhou nesse filme com a atriz Raquel Ferreira, num trabalho marcante e que lhe rendeu alguns prêmios. Fala um pouco sobre esse filme e o que ele representa na sua trajetória como realizadora.

KA: Velhos tempos vem de um edital estadual da Secretaria da Mulher e da Diversidade Humana [órgão do Governo do Estado da Paraíba]. A proposta era fazer um filme/vídeo que falasse sobre violência contra mulher, mas que oferecesse uma solução: o que fazer diante da violência?

Eu já tinha um roteiro rascunhado sobre uma neta que, afetivamente, após tempos distantes, voltava para a casa da avó. Só fiz dar vida a essa neta e a essa avó focando na temática pedida pelo edital. Meu processo de construção de personagem é assim: Quem é essa neta? Por que ela está voltando para a casa da avó? Ela volta para ficar? Qual o impulso que a leva a voltar? Quem foi essa moça quando criança? Quais suas construções simbólicas? Da mesma forma, dei vida a avó, sempre questionando a personagem.

Como eu ouvia muita da minha avó materna histórias de violência doméstica que ela vivenciou com o meu avô, eu desenhei simbologias oralizadas pela minha avó na avó da personagem principal. Sim, na obra o que a avó conta que sofreu foram relatos ouvidos da minha avó.

Cena da filme Velhos Tempos (2016), de Kalyne Almeida

Esse filme não tem a típica violência com sangue, socos e hematomas. Trato da violência simbólica, silenciosa, escondida e disfarçada de amor. Falo do desprezo como algo cotidiano e para punir o outro, falo de relacionamentos sufocantes, agoniantes… Falo de grosserias e maus tratos. E é assim que a violência física, muitas vezes se inicia: com violência moral, patrimonial e psicológica. Esse filme, de certa forma, é o meu grito. Não necessariamente o meu próprio grito de dor, mas o que eu sinto de muitas mulheres e por eu ser uma mulher, hoje com certa independência, eu tento gerar um debate através de Velhos Tempos. Dos tempos da violência da minha avó — que não tinha mecanismos que punissem o agressor — e o tempo atual…

Por coincidência, tempos depois eu me vi na situação da personagem principal do meu próprio filme. O que fiz? Voltei pra mim. Sai da situação. Taí, meu filme me ensinando a como agir, quem diria? [risos]

Falo isso rindo porque é irônico e, ao mesmo tempo, algo que estamos passando todos os dias através de várias mulheres. Velhos Tempos tem uma fotografia muito bela de Leandro Cunha. Tem Maria Alyce como atriz mirim — e que foi descoberta através de Velhos Tempos e que hoje é atriz de fato, Raquel Ferreira, Neide Melo, Erik Martinez e uma equipe técnica e artística reduzida, mas que deu gosto de trabalhar. Minha primeira ficção.

“Cinema urgente: tem de fazer! E se tem eu pra fazer, mesmo com poucos recursos, vou lá e faço. Queria só lembrar que quando falo que “eu faço”, estou falando do impulso de gestar uma arte. Mas não a faço só: eu hoje sou as 50 pessoas que estão fazendo o filme comigo” | Kalyne Almeida

CC: Seu quarto filme de curta-metragem, Aponta Pra Fé, acabou virando um longa-metragem que deve ser lançado esse ano. Como foi isso? Haverá dois filmes no circuito, um de curta e outro de longa duração? Explica isso pra gente.

Pré-lançamos Aponta pra fé — versão curta — no Porto do Capim, no ano passado [numa sessão fechada, com público restrito]. Porém, vamos fazer uma exibição pública ainda nesse ano. Com a pandemia, estamos vendo por qual meio iremos viabilizar essa exibição. Queremos exibir e debater a questão da moradia e da especulação imobiliária. A ideia é termos mais dois curtas com temáticas parecidas, dirigidos por mulheres e alguns curtas já produzidos no próprio Porto do Capim.

Aponta pra fé — o curta, é um filme de mostra, de debate, não sei se entrará em circuito de festivais. Estamos estudando a possibilidade de exibir para fins de debates mesmo.

Já o longa é um spin off do curta. Chama-se Aponta para fé ou todas as músicas da minha vida. Pretendemos lançar num festival da nossa cidade, em dezembro, começar pela “nossa casa” e depois ir pro circuito exterior. Queremos dialogar com o cinema de hífen, Latino-americano, queremos dialogar com outras diretoras e com realidades similares fora do nosso território nacional. Para o longa, o financiamento é todo vindo da Grão de Cinema [produtora de Kalyne], um investimento que estou fazendo por acreditar no projeto, por credibilizar uma equipe de mais de 50 pessoas, por amar o que faço, por me enxergar nesse lugar de produção com poucos recursos, mas que faz, que vai à luta, que busca parceiros e sonha, sonha, sonha e realiza. Eu amo Aponta Pra Fé ou todas as músicas da minha vida!

CC: Aponta Pra Fé será o terceiro longa-metragem de ficção dirigido por um mulher na história do cinema paraibano. Como você enxerga esse fato?

Cinema urgente: tem de fazer! E se tem eu pra fazer, mesmo com poucos recursos, vou lá e faço. Queria só lembrar que quando falo que “eu faço”, estou falando do impulso de gestar uma arte. Mas não a faço só: eu hoje sou as 50 pessoas que estão fazendo o filme comigo. Cada pessoa, cada figurante, cada produtor, cada cozinheira, elas e eles são meu primeiro longa. Me emociona falar disso porque estou falando de vidas que sonharam o meu sonho! E que nesse processo de pós-produção, continuam sonhando. Agradeço ao Porto do Capim a As Garças do Sanhauá — Associação das mulheres do Porto do Capim. Sem elas, nada seria como está sendo! É a força feminina. Ah, posso usar esse espaço pra dizer que amo cada pessoa, parceiro, parceira, que está nos filmes Aponta Pra fé? Gratidão por tudo!

CC: Paralelo a esses projetos, você produziu um novo filme para o Projeto Raiz, sobre feminilidade e ancestralidade. Como se envolveu nessa articulação? O teu filme terá qual abordagem?

Raiz é um filme-vivência, ou documentário-vivência. É assim que odenomino. Eu peguei a câmera e conversei com algumas mulheres. Tudo começou quando fui trançar meu cabelo e conversamos sobre o processo de trançar cabelos de netas, de filhas, da relação que se cria quando estão entre mulheres. Depois percebi que eu estava em busca de enraizamentos, de mulheres que trabalham e sustentam sua casa do trabalho de suas mãos: da coletividade. É um filme feito para a exposição Ser Mulher, mas que durante a pandemia ficou fechada. Foi desmontada e terá um espaço emambiente virtual: uma exposição on-line, em breve pela Estação Ciencias, Cultura e Artes de João Pessoa [órgão vinculado à prefeitura da capital paraibana].

Cena do filme A Ruga (2012), de Kalyne Almeida

CC: Na Paraíba tem crescido o números de mulheres na cadeia de produção audiovisual em posições-chave. No entanto, ainda são poucas as mulheres que se aventuram na realização de curtas e de longas e em funções como direção de fotografia e som, espaços quase que completamente dominados por homens. Como você avalia esse quadro?

Precisamos instigar as mulheres para que lideram suas equipes, precisamos que as universidades convoquem as estudantes para a função de fotógrafa, por exemplo. Isso não é só aqui na Paraíba, é no Brasil, e acho que no mundo. Precisamos fazer! Eu estudei montagem e hoje monto alguns dos meus filmes, por exemplo. Faço direção de fotografia também. Acho que é isso, Glauberizar a vida: pegar na câmera (mesmo sem saber mexer direito) e escrever a sua ideia que tá na cabeça.

CC: Diante de tantas dificuldades e incertezas, o que te motiva a seguir fazendo cinema?

O cinema me salvou. Salvou do meu silenciamento. Me ensinou a ser mais mulher. Me ensinou sobre meus direitos. Me ensinou a trabalhar em equipe. Me ensinou a servir (aprendo todos os dias sendo produtora, ser produtor é servir e o ato do serviço é sagrado!) Agradeço ao Universo e ao Divino por eu poder servir, escolher o melhor lanche, cuidar do bem-estar da equipe, cuidar para que o filme de uma ou um parceiro nasça. Além disso, leciono audiovisual hoje. Faço também para mostrar que é possível e levar esse brilho nos olhos para os meus alunos. Faço cinema porque me faz me acordar pela manha e ter vontade de escrever através da soma das imagens. Faço cinema porque amo ter as trocas no set, nos estúdios. Faço cinema por puro amor e dedicação. Mas não romantizo, somente. Entendo o filme como um produto também. Entendo o cinema como ganha-pão, como um trabalho importante para a sociedade, que necessita de fomento público! Faço cinema porque acredito na nossa luta coletiva por dias melhores para o setor. Acredito e luto por isso!

CC: No Curta Curtas defendemos que os filmes de curta duração devem ter seu acesso democratizado através de canais de exibição na web. Você se preocupa em democratizar o acesso? Se sim, quais medidas você toma para concretizar isso?

Acredito que o filme deva ter um tempo de circulação em outras janelas como festivais e mostras antes de ser liberado gratuitamente, pois até alguns festivais exigem isso. E como vivemos disso, é importante termos esse tempo que, geralmente, são 2 anos de circulação. Depois, sim, libera-se para uma plataforma gratuita.

Contudo, existem filmes e filmes, projetos e projetos…. Tem um que estou fazendo que já vai direto para as plataformas gratuitas: Raiz. Eu já fiz com esse intuito. Então, acho um bom debate, mas por outro lado entendo a necessidade que o realizador/produtor/diretor tem em rentabilizar ou circular em festivais ou até vender para um um canal/plataforma.

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.