3x4: Katia Mesel

A cineasta Katia Mesel (Foto: Rafael Bandeira)

Pernambucana do Recife, de família judia, arquiteta de formação, mãe de três filhos, avó de quatro, Katia Mesel teria uma biografia relativamente convencional não fosse um “pequeno” detalhe: ela faz cinema, há mais de 50 anos.

Pioneira, foi a primeira cineasta de Pernambuco: começou em 1968 e acumula, desde então, mais de 300 obras audiovisuais no currículo. Entrou para a história como a primeira realizadora a participar de um festival de cinema no Brasil, em 1973. Sua produtora, a Arrecife Produções, deu a largada entre as produtoras do Nordeste dedicadas a cinema, em 1981.

Esses detalhes ressaltam o pioneirismo de Katia e sua ousadia para desbravar o universo do cinema numa época em que as mulheres eram ainda mais minoritárias nesse segmento.

Em sua atuação na sétima arte, levou a precisão no olhar da Arquitetura: “como arquiteta, ver ‘volumétricamente’ é um sentido a mais”, ressalta.

Dona de uma filmografia robusta, ela é referenciada com mais frequência por três títulos: Recife de Dentro Pra Fora (1997)[leia nossa crítica], sobre os rios que cortam a capital pernambucana, Sulanca (1986), que aborda o empreendedorismo das mulheres de Santa Cruz do Capibaribe, no Agreste pernambucano, e Eu Vi o Mundo — Ele Começava no Recife (1994), inspirado na tela homônima do artista plástico Cícero Dias. “Esse é o ponto de vista da crítica. São os [filmes] mais divulgados, os que eles tiveram acesso, mas minha obra é tão vasta, em tantas bitolas, mídias, suportes, gêneros, duração, que acho que cada fase tem seus emblemáticos”, avalia Katia.

Cena do filme Recife de Dentro pra Fora, de Katia Mesel

Esses filmes e vários outros de Katia Mesel estão disponíveis para serem vistos no site da Cinemateca Pernambucana e no seu canal de vídeos no YouTube, lançado recentemente e com estreia do filme A Volta (2020), curta experimental sobre redescobrir o próprio espaço no período de confinamento. A cineasta segue na ativa, lançando projetos e dialogando com novas linguagens e tecnologias do audiovisual. Na sua trajetória, o cinema é uma reinvenção constante.

Relação com o cinema

“O cinema é minha vida, penso em forma de cinema: dimensionando, escutando os vários áudios que compõem a ambiência, decodifico esteticamente os espaços, mudo coisas de lugar em minha cabeça, penso em situações. Quando vejo uma expressão autêntica da cultura popular, ou o processo de criação de um pintor, ou um deleite de gastronomia, me dá uma impulsividade de registrar, valorizar, divulgar.”

A filmografia

“Sobretudo como documentarista, acho de uma grande importância o conjunto das obras: são fatias cronológicas da cultura pernambucana. De 1990 a 1993, dirigi e produzi 200 documentários, nas mais variadas temáticas, para o programa Pernambucanos da GEMA, exibido semanalmente na TV Pernambuco, realização independente da Arrecife Produções, minha produtora. E em 2008 produzimos 45 curtas. Isso é real, consistente. Gosto muito de PARTO SIM! e Rosana, são temáticas femininas, um sobre a impossibilidade de parir em Fernando de Noronha, o outro sobre a sexualidade diferente de uma mulher. A Gira (2008) sobre as influências das matrizes africanas nos folguedos pernambucanos ganhou prêmio da Fundação Palmares. Gosto também do curta O Mago das Artes (2014), pelo modo como ele foi feito, com imagens de muitas pessoas, sejam casuais, em shows, ou depoimentos para programas e vídeos, com imagens de arquivo da Arrecife. Não posso deixar de citar O Rochedo e a Estrela (2007) [seu único longa-metragem, sobre o surgimento, apogeu e diáspora da comunidade Judaica do Recife, no século XVII], talvez por ter sido filmado em 4 países, falado originalmente em português e inglês, inserindo Pernambuco na história e na economia internacional. Tem um apelo grande para o público de exterior, tendo sido convidado para vários festivais como Brazilian Film Festival de Toronto (destaque da Globo News), Festival de Cinema Brèsilien de Paris, Festival Internacional de Cinema Judaico de SP e uma exibição especial a convite da Biblioteca Pública da cidade de Nova York, nos EUA.”

Entre mais de 300, um filme favorito

“Sem dúvida o Recife de Dentro pra Fora (1997) é o que me trouxe mais prêmios, é unanimidade de público, além de ser em 35mm, direção de fotografia por Ricardo Della Rosa, finalizado no exterior, com legendas em inglês, francês, português, espanhol, e todas as acessibilidades. Foi o que me levou a diversas partes do mundo, representou Pernambuco em dezenas de festivais, tendo sido eleito, inclusive, melhor filme em vários festivais internacionais de cinema ambiental. Homenageia João Cabral de Melo Neto, poeta ímpar, usado como exemplo em escolas e universidades.”

Cena do filme Tô Ligada, de Katia Mesel

Mulheres no cinema

“Sou frequentemente convidada para ser júri de festivais, ou mesmo concorrente, faço questão de assistir toda programação oferecida, vou como espectadora também. Acho louvável o aumento de quantidade de cineastas mulheres, negras, trans, índias. Acho que o acesso ao audiovisual na palma da sua mão, aumenta democraticamente o número de pessoas produzindo.”

Evolução dos equipamentos de captação e produção

“Iniciei em 1968, com uma câmera 8mm, passei para Super8, 16mm e 35mm, que são suportes em película. Sou autodidata, por imposição da falta acadêmica de cursos de cinema em Pernambuco na época. Então, aprendi dentro da exatidão, sendo fundamental a preparação, o planejamento, cronograma, pois o negativo 16 e 35mm sempre foi muito caro, exorbitante em comparação com o ‘primo’ vídeo. Isso implica, claro, no aumento do orçamento com transporte, revelação e montagem de imagem e som. A evolução técnica dos equipamentos de vídeo se molda à fome interminável do mercado pelo consumo, sempre novidade, sempre melhor. As câmeras fotográficas e de filmar se pautavam na qualidade das lentes e apostavam na longevidade dos produtos. Uma lente Zeiss, por exemplo, era para toda a vida. Uma câmera fotográfica Leica, funcionava durante 40 anos. Atualmente um Iphone caduca no máximo em um ano, e está no seu bolso/bolsa. Claro que para atrair e motivar a venda, os produtos oferecidos apresentam sempre mais novidades e opções, e o mundo se nutre da produção audiovisual, quer seja em notícias, informações, lazer, cultura, jogos, namoros, sexo, entretenimento, medicina. Considero uma endoscopia uma obra audiovisual, com esse tipo de câmera o documentarista entra dentro de um formigueiro, ou no seu esôfago. As lentes de câmeras de cinema tinham profundidade de foco, hoje as câmeras, mesmo com resolução 4K, são em síntese câmeras de fotografia, não levam em conta essa “besteira”. Muitos cineastas de hoje nem sabem o que é isso. Pode-se gravar adoidado 3, 4 horas, sem ônus, e editar 5 minutos incríveis. Não é mais necessário a perfeição, tudo é efeito. Democratizou a profissão de cineasta.”

Sobre ser mulher num ambiente masculino

“O início do meu aprendizado no cinema se deu de forma muito individual, isolada, experimental, era 1968 e filmava em 8mm. Não me relacionei com ninguém nessa época. No início da década de setenta, fazendo Super8, me deparei com os rapazes fazendo filmes, mas eram pessoas muito amáveis, amigos, e nunca senti nenhuma pressão por ser mulher. Eu era muito “prafrentex”, libertária, e não prestava a atenção a essa coisa cinema de gênero. Estávamos fazendo cinema em 70, éramos diferentes. Em 1973 fui a primeira mulher a participar de um festival de cinema no Brasil, a 2ª Jornada de Cinema da Bahia, com o Super 8 ROTOR.

Cena do filme Sulanca, de Katia Mesel

Na década de 1980, já filmando em 35mm, e já no âmbito nacional, frequentando Embrafilme, indo a festivais apresentando curtas em 35mm, não senti nenhum preconceito, ao contrário, eu era uma presença rara, mulher, desenrolada, nordestina, culta, arquiteta, artista gráfica, produtora, fiquei logo amiga de Orlando e Conceição Sena, Geraldo e Malu Moraes, Gustavo Dahl, Tetê Moraes, Nelson Pereira dos Santos, Bigode [Luiz Carlos Lacerda], Ana Maria Magalhães, Cosme Alves Neto, ele que me levou ao Festival de Cuba, em 1987 com o Oh de Casa. Certos momentos, na sequência da carreira, senti pontadas de preconceito por ser nordestina, não por ser mulher. Sempre me comportei e comporto como gente, ser humano, laboriosa, responsável e coerente com meus desejos. O Oh de Casa foi o primeiro curta metragem a acompanhar um longa estrangeiro, no início da lei de obrigatoriedade do cinema nacional. Em 1985 entrou em cartaz no Cinema Ricamar, no Rio de Janeiro.”

Preconceito etário

“Não acredito que alguém hoje em dia tenha preconceito comigo por ser mulher, acho mais fácil não gostarem de como me visto. Porém, idosa fazendo cinema tem preconceito sim. Certa vez, uma pessoa do meio que fazia uma pesquisa sobre mulheres cineastas disse que não ia me entrevistar porque só estava entrevistando “as contemporâneas”. Eu nunca parei de fazer cinema, então, como não sou contemporânea? Não acho que esse tipo de coisa aconteça com frequência com cineastas homens da minha idade.”

Relação com o público

“O público é o componente mais importante de toda a cadeia produtiva do audiovisual. Se o público não assistir, o cinema não aconteceu. Quando alguém me diz “não gostei de seu filme”, eu respondo: que bom que você assistiu, tem uma opinião. Às vezes não gostamos de um filme de primeira, e precisamos assistir de novo para entender melhor, ou prestar mais atenção. Todos meus filmes, com exceção de Rosana, são para todos os públicos, de todas as idades. Os documentários apresentados no programa Pernambucanos da GEMA, tem inclusive uma conotação educativa. Sempre que possível, quando faço um lançamento ou exibição, procuro ter um bate-papo com a plateia, acho importante.”

Cena do filme Parto Sim, de Katia Mesel

Distribuição dos Filmes

“O curta metragem, ainda hoje, não tem uma política de exibição nos cinemas, podemos apresentar em festivais e mostras, é muito difícil vender para as TVs, ou conseguir um contrato de distribuição. Principalmente porque as distribuidoras são do Rio e São Paulo e nossas temáticas são, muitas vezes, preteridas. Não tem uma distribuidora em Pernambuco que se interesse em comercializar nossos produtos e eu não sou boa vendedora. Fica muito dentro do esforço pessoal.

Na hora de criar um roteiro me prendo a assuntos originais, regionais, de cultura, meio ambiente, que possam trazer algo positivo, à despeito de qualquer situação. Outra coisa é que tenho uma experiencia muito evidente na produção musical, produzi o álbum duplo PAÊBIRU, instrumental de Lula Côrtes e Zé Ramalho, em 1975, na época só foi curtido por um grupo seleto, e 30 anos depois fez um tremendo sucesso, tanto que é o LP mais caro do Brasil, até hoje.

Cena do filme Oh de Casa, de Katia Mesel

Acho, inclusive que isso pode acontecer com O Rochedo e a Estrela, daqui há um tempo vão entender a importância dessa minha obra sobre a história de Pernambuco no século XVII, quando se tornou uma ilha de liberdade religiosa. Sulanca, em 35mm, prêmio da Embrafilme, na época que foi lançado passou batido, hoje sou chamada para vários eventos, e exibições — inclusive, inspirou um longa, recentemente. O problema não é o público, é como chegar até ele. Estava resistente em colocar minhas obras em um canal, no YouTube, mas essa situação atual, em que não temos como frequentar salas de cinema, me indicou que a solução é usar essa plataforma e estou nutrindo o Canal Katia Mesel, já com 25 títulos e colocando mais, toda semana. Também tenho vários títulos no portal da Cinemateca Pernambucana.”

Fazer cinema, não importa o suporte

“A minha preferência é continuar a fazer cinema, na mídia que aparecer. Vou ter sempre algo a dizer, assunto para documentar. Sair do mais difícil para o mais fácil é moleza. A Volta, meu curta mais recente, por exemplo, foi gravado com uma GoPro, Hero Black, 4K, com estabilizador, você vê na hora e edita pelo Iphone. Foi realizado em um dia, ensaiamos eu e o fotografo, Avir Shamaim, pois queria um plano continuo (exatidão do cinema), e queria também gravar o som durante a filmagem. Uma forma de não precisar de vários técnicos, nesse momento de isolamento compulsório. Já coloca no Youtube e ganha o mundo, e guarda na nuvem, não fica refém da traição das mídias.”

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Sandro Alves de França
curta curtas :: curtindo curtas, curtindo cinema

Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.