A Dama do Estácio

Com que roupa vou envelhecer? Os impactos do envelhecimento numa sequência espiritual de “A Falecida”, de Nelson Rodrigues

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No longa A Falecida (1965), de Leon Hirszman, baseado na peça de Nelson Rodrigues, vimos a saga de Zulmira, uma jovem adúltera envolvida, de maneira obsessiva, com questionamentos sobre a vida e a morte. Quase 50 anos depois, no curta A Dama do Estácio (2012), de Eduardo Ades, nos deparamos com as mesmas dúvidas da personagem, numa versão mais madura. E é no envelhecimento de Zulmira que o filme de Ades se baseia.

Noel Rosa se perguntava em uma de suas músicas “com que roupa eu vou pro samba que você me convidou?”. Na ótica de Zulmira, o evento que exige cuidados deixa de ser o samba e passa a ser o seu próprio enterro. Carregando no rosto e no corpo as marcas do passado, a protagonista de A Dama do Estácio já não é exatamente a mesma de outrora, pelo menos por fora. Agora envelhecida e tendo que vender o seu corpo para sobreviver, Zulmira continua sentindo-se rejeitada, moribunda e só, praticamente um estorvo. É como se o mesmo sentimento já visto 50 anos antes tivesse aumentado e ganhado novas proporções, como se a vida a tivesse feito ficar cada vez mais obcecada em dar a si própria uma morte digna.

Ainda que para alguns pareça mórbido pensar nisso, para Zulmira era sinal de celebrar e findar, finalmente, todo o seu sofrimento. Nesse contexto, a “roupa” da música de Noel funciona como metáfora para todos os preparativos do enterro.

Enaltecendo o jogo de cenas, numa eterna alternância entre luz e escuridão, a estética do filme é um ponto que chama a atenção, principalmente no que se refere à retratação sensível de uma dura realidade, através de um cenário que explora um ar saudosista e bucólico da paisagem urbana do subúrbio carioca.

A Dama do Estácio talvez funcionasse melhor como um filme de duração maior, no qual os anseios da protagonista pudessem ser mais aprofundados. Ainda assim, o curta presta uma importante homenagem à obra original, mantendo as mesmas reflexões presentes em A Falecida, como os desabafos sobre morte — mesmo que não tão intensos quanto os do longa-, e trazendo de volta uma essencial figura do passado de Zulmira: seu amante Timbira — interpretado por Nelson Xavier, sempre gigante.

Entre tantos acertos, é necessário pontuar a alma da trama. À época, no vigor de seus 82 anos, Fernanda Montenegro, considerada por muitos a maior atriz do país (inclusive pelo autor deste texto), não teve pudores e encarnou com maestria uma velha prostituta assombrada por momentos dolorosos da vida. Em sua performance, é possível enxergar a ingenuidade da personagem quando jovem, ao mesmo tempo em que percebemos uma hecatombe de sentimentos que só o tempo poderia propiciar.

Em uma cena que transborda sensibilidade, Zulmira toma o último banho de chuva da vida, repetindo o feito de décadas atrás. O momento, tão belo, não precisou de texto: bastaram a atuação genuína de Fernanda e a direção singela de Ades. Uma grande momento de uma grande artista que sempre enriquece qualquer trabalho, independentemente do papel.

Vida longa à gênia — e também a Eduardo Ades, que demonstrou sinais de genialidade.

A Dama do Estácio
Direção: Eduardo Ades
Ano: 2012

Assista aqui.

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