Afinal, o que caracteriza um filme de curta-metragem?

Cena do filme Um Cão Andaluz, de Luis Buñel

O conceito do que é um curta-metragem não é consenso na comunidade audiovisual.

No Brasil, a Agência Nacional do Cinema (Ancine), através da Medida Provisória 2228, considera curtas obras de até 15 minutos de duração, contando do primeiro segundo até o fim dos créditos. Já a maioria das mostras e dos festivais de cinema brasileiros dedicados aos curtas — que são principal janela de exibição dessa modalidade de cinema no país — aceita obras de até 20 minutos. É o caso, por exemplo, de festivais como o Curta Taquary, de Pernambuco, o Comunicurtas, da Paraíba e o Curta Caicó, do Rio Grande do Norte.

Já o Kinoforum — Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, o maior e mais importante festival desse segmento no Brasil (e um dos mais importantes do mundo) aceita obras de até 25 minutos de duração, contando os créditos.

Essa é a média de duração defendida pela cineasta, produtora e distribuidora de curtas Anna Andrade como o limite de tempo que melhor situa o conceito de um curta-metragem. “Gosto de pensar num filme de curta como uma obra de até 25 minutos de duração, se for pensar na proposta narrativa desse cinema, que deve ‘mostrar à que veio’ num tempo bem menor que o de um longa, por exemplo”, pontuou.

Cena do filme O Som ou Tratado da Harmonia

À frente de uma produtora e distribuidora dedicada a curtas, a Tarrafa Produções, Anna reconhece a relevância de obras de maior duração que não são longas, mas pondera que o circuito de exibição delas é ainda mais restrito. “Já é mais complicado distribuir curtas com mais de 20 de minutos de duração. Os chamados ‘médias-metragens’, então, praticamente não têm espaço, salvo algumas mostras secundárias em alguns festivais — que geralmente não são competitivas”, avaliou ela.

A ideia de média-metragem, contudo, é um tanto vaga e (também) não é consenso em diversas culturas cinematográficas ao redor do mundo: o Festival de Sundance, por exemplo, considera curtas filmes de até 50 minutos. No Oscar, são elegíveis na categoria de curta-metragem filmes de até 40 minutos.

Torquato Joel, cineasta paraibano considerado um dos mais proeminentes curta-metragistas do Nordeste, define a narrativa de um curta como “a capacidade de síntese sem prejuízo ao que está sendo narrado. Um desafio instigante. Não me lembro bem se foi Buñuel que disse que a maturidade de um cineasta deveria ser o curta. Mas como vivemos em uma sociedade de mercado…”, acrescentou se referindo a valorização ostensiva do longa-metragem no circuito comercial de cinema.

Cena do filme Ilha das Flores, de Jorge Furtado

A cineasta e pesquisadora Josy Macêdo, graduada em cinema e mestranda em comunicação, atenta que “a gente é ‘ensinado’ que curta é um filme com até 25 minutos. Que um média é até 45 minutos e que a partir daí, é longa”, pondera ela sobre os conceitos difundidos nos espaços de formação e de veiculação dessa modalidade audiovisual.

“Mas são coisas bem empíricas. Se pensar que as janelas de exibição são basicamente festivais e que a maioria, ao menos aqui no Brasil, nos coloca um teto de 15 minutos, isso meio que coloca o realizador nessa métrica (se o objetivo é circular em festival), já contabilizados os créditos finais. Eu gosto muito do conceito de curta como poder de síntese que Torquato [Joel] defende. A maioria dos longas que vejo, se tirar uma coisa ou outra, o sentido do filme permanece. Talvez todos os filmes sejam curtas. E aquilo que chamamos de longa seja, ao menos em boa parte dos filmes, só um curta estendido ou um conjunto de vários curtas”, acrescentou Josy destacando aspectos da estilística que atravessa a narrativa dos filmes.

O cineasta e professor do curso de cinema da Universidade Federal do Ceará, Marcelo Ikeda, destaca a questão da nomenclatura convencionada para essas obras audiovisuais — anacrônica, num olhar contemporâneo.

Cena do filme a A Velha a Fiar, de Humberto Mauro

“Interessante pensar que o curta sempre foi chamado de ‘curta-metragem’ por conta da época da película, onde você tinha metros de filmes. Era a metragem do filme porque tinha o suporte físico da película. Agora, que se passou da película para o digital e o filme nem tem mais esse suporte físico, mas é um arquivo, talvez o mais correto, em termos estritos, seja [denominar como] uma obra de curta duração, e não curta-metragem, embora tenha sido convencionada [essa definição]”, pondera Ikeda, que foi também, durante 11 anos, funcionário de carreira da Ancine.

No quesito estilística, a noção de curta-metragem encontra maior convergência:

“Em termos estéticos e conceituais, o curta pode ser qualquer coisa. Ele pode ser o que for: um curta experimental, de ficção, documentário, animação. A gente deve lembrar que o cinema começou no formato de curta duração, os primeiros ‘filmetes’ dos irmãos Lumière duravam cerca de um minuto, um pouco menos. Eram obras de curta-duração”, ressalta Ikeda.

Ele complementa fazendo uma analogia entre a literatura e o cinema para refletir sobre o processo de valoração das obras:

“Gosto de fazer essa analogia entre o conto, o romance e a novela: na literatura você pode escrever obras de 100, 200 e 300 páginas — os romances e as novelas literárias, por exemplo — mas você também pode escrever obras com um número reduzido de páginas, como os contos e crônicas, e nem por isso elas são consideradas menores na hierarquia da análise literária”, pontuou.

Cena do filme Entreato, de René Clair

“Então, do mesmo modo, você pode ter uma obra-prima no formato de curta-metragem. No Brasil, você tem obras como Di (1977), o curta do Glauber Rocha sobre o enterro do pintor Di Cavalcanti, ou a A Velha a Fiar (1964), do Humberto Mauro. São dois curtas-metragens obras-primas. Tem também Ilha das Flores (1989), do Jorge Furtado. Um curta que admiro imensamente é O Som ou Tratado da Harmonia (1984), do Arthur Omar. Em nível mundial temos Um Cão Andaluz (1929), do Luis Buñel, uma obra do surrealismo, Entreato (1924), do René Clair. São obras de curta duração que estão na antologia dos filmes mais marcantes da história do cinema, apesar de ter uma curta duração”, concluiu Ikeda.

O cineasta e professor ainda acrescentou que a linguagem do curta tem outras ramificações e galga novos espaços com a cultura digital:

“Agora, com o Youtube, VIMEO e as redes sociais, o formato do curta-metragem abre outras possibilidades. O videoclipe, por exemplo, é uma obra publicitária, criada para divulgar uma música, mas é também um curta-metragem, que pode ser criativo, irreverente. Então, são muitas possibilidades para o curta-metragem, como expressão e como linguagem”, destacou.

Entre conceitos, definições e canais de exibição, o curta-metragem segue sendo uma modalidade de cinema que desperta interesse, tem potencial de público e possui tradição cultural, que se renova a cada geração. E isso se estende a qualquer classificação que se faça em relação as obras audiovisuais de curta duração.

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Sandro Alves de França
curta curtas :: curtindo curtas, curtindo cinema

Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.