Alfazema

Carnaval, sexo, culpa, masculinidade tóxica, deus, diabo, anjo e muito mais: o curta de Sabrina Fidalgo é um divertido delírio metalinguístico

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Conhecida como uma das maiores plantas medicinais, a alfazema é usada no tratamento de várias doenças, em virtude de seu alto poder de desintoxicação e de cura. Dentro dessa perspectiva, Sabrina Fidalgo usa o remédio e sua função para compor Alfazema (2019), um curta metalinguístico que se passa numa manhã pós-carnaval.

Ambientada inteiramente num banheiro quase claustrofóbico e com ares psicodélicos, a crônica narra os dilemas de Flaviana, uma mulher que, após uma intensa noite de carnaval com um homem, se arrepende do ato e almeja a purificação. Enquanto Lucas toma banho, a mulher o enxerga como sua intoxicação e tenta arrumar uma forma para se livrar dele. Mesmo que sinta atração por aquela figura, ela se sente subjugada pela sua masculinidade tóxica. Afinal, o desconhecido age como dono de tudo — até do corpo de Flaviana.

A partir do momento em que uma espécie de diabo surge em cena, sob a pele de uma provocante mulher, o filme ganha gás e ares ainda mais lunáticos. Um certo choque entre ficção e realidade pode ser visto, mesmo que haja resquícios de lucidez. Nesse sentido, a figura do diabo ali representa o sentimento de culpa de Flaviana, julgada pelo moralismo hipócrita da sociedade e que não aceita suas próprias atitudes. Quanto mais fracassa nas suas tentativas de mandar o homem embora, mais Flaviana se vê mergulhada nos seus demônios internos, como se nada fizesse sentido ou tivesse uma solução.

Quando tudo parece perdido, a figura de um anjo procura reverter a situação e apoiar Flaviana. Tal qual o julgamento divino de O Auto da Compadecida, aqui também temos o duelo entre o bem e o mal, personificados em corpos de mulheres enigmáticas e espalhafatosas, e a busca pela clemência. Enquanto o diabo atiça a protagonista, o anjo luta para que ela se desprenda de sua angústia e tenha paz. Aos poucos, o roteiro ágil fica cada vez mais ácido e perto de um fim, ainda que nada pareça real.

É a deixa que Fidalgo encontra para inserir a imagem de Deus. Sob a forma de uma mulher negra, a divindade surge como a última cartada para “absolvição” dos pecados de Flaviana. Exuberante e sem papas na língua, Deus — ou melhor, a Deusa — pouco se importa com o calvário que a protagonista criou. Sua única preocupação é em aparecer naquele momento, como uma autoafirmação, e contribuir para o caos daquele lugar, independentemente das consequências.

Nesse viés, Deus destoa completamente da imagem que muitos fazem dela, criando uma personalidade desbocada e fora do comum. Quanto mais o diabo e o anjo brigam, mais Deus se delicia com tudo aquilo, forçando Flaviana a procurar sozinha uma intervenção. É interessante, nesse sentido, a interferência de Sabrina Fidalgo em um determinado ponto da obra, como se estivesse brincando de fazer um filme dentro do outro — tal qual Deus — e agindo como peça da narrativa, principalmente após a entrada divina. É a metalinguagem nua e crua.

Essa ferramenta, por sua vez, confunde a percepção do espectador, já que pensamos que tudo pode ser um sonho alucinógeno de Flaviana e, quando menos esperamos, até o “real” se mostra fictício. Tudo ali satiriza a própria construção, como se tudo levasse a uma purificação da história e da alma dos personagens. As interrupções das cenas não são à toa e tudo se encaixa no quebra cabeça, embora não pareça fazer muito sentido.

Com um elenco incrivelmente sintonizado (principalmente Shirley Cruz e Elisa Lucinda, intérpretes, respectivamente, de Flaviana e Deus), Alfazema ressignifica o conceito criado por si mesmo e constrói uma debochada história, satirizando a religião e criticando o lado tóxico do mundo masculino, com galhofa, bom humor e uma alta dose de absurdo. Um grandioso filme que merece reconhecimento e ser visto várias vezes, que finaliza com a mesma qualidade do início, sempre com o extravagante tom avermelhado.

Vida longa à diretora Sabrina Fidalgo!

Alfazema
Direção: Sabrina Fidalgo
Ano: 2019

Veja o filme aqui.

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