Avoada

“Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”
Chico Buarque

Avoada (2018) é daqueles filmes cuja temática oblitera, em parte, a forma. Os relatos de mães pretas e pobres, moradoras de periferia, que perderam seus filhos para a violência das forças policiais (e para o racismo estrutural que as alicerça) ganham um relevo central — e é inescapável ser arrebatado pelas histórias e ter empatia pela dor dessas mulheres.

Apesar de contar uma história que se repte, com um recorte social recorrente, a abordagem do documentário não é óbvia nem apelativa. Só por isso o filme já tem muito mérito, mas ele vai além: constrói uma linha narrativa entre as histórias, as situa social, geográfica e tematicamente, bem como traça alegorias sobre a cultura e as estruturas que perpetuam os assassinatos de pessoas negras, pobres e periféricas.

A voz e o depoimento das mães perpassam a narrativa de um modo que presentifica a figura dos filhos mortos e a lacuna impreenchível que eles deixaram. Eles não são mais só estatísticas de violência ou nomes aleatórios em matérias e reportagens policiais, são garotas e garotos com história, rostos, gostos, singularidades; muito diferentes entre si, mas com um traço em comum: são jovens pobres e negros, e essa condição foi a sentença que os tornou alvo e vítimas de uma necropolítica em curso.

A narrativa do documentário, usando o recurso de montagem intercalada, às vezes paralela, vai situando as histórias num ritmo equilibrado, para que se conheça as personagens e, gradativamente, se vá acessando detalhes e tomando ciência da barbárie instituída no Estado de Exceção paralelo que ceifou e ceifa vidas de crianças, adolescentes e jovens.

O filme traz apenas um segmento de ficção que aparece interligado às histórias reais: dois meninos, um branco e um negro. Alheios a toda estrutura social, brincam livres no resquício de liberdade que a infância reserva. A ludicidade, entretanto, é entrecortada pela tensão de que algo ruim está para eclodir: assim como a culminância dos casos factuais, o desfecho da encenação é simbólico e sintomático de como, até quando atravessados pela inocência, os casos de mortes de jovens pretos refletem o racismo estrutural.

Não é um filme para ter esperança, mas uma obra para refletir e ser impactado pela memória da dor, uma denúncia em forma de manifesto contra um plano de extermínio de vidas negras. Elas importam e merecem ser lembradas — e a injustiça que as interrompeu denunciada.

Avoada
Direção: Magno Pinheiro
Ano: 2018

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.