Botões Dourados

Filmado burlando o sistema, documentário mostra bastidores da Guarda Nacional Russa através de perfis das crianças e jovens recrutados

Hackeamento do sistema. Uma expressão muito em voga hoje em dia para se falar de pessoas que, de dentro de alguma estrutura ou espaço de poder, público ou privado, subvertem a lógica e as normas impostas usando de subterfúgios e estratégias para que não se perceba que as regras estão sendo burladas e, em alguns casos, frontalmente transgredidas.

É essa operação que o documentarista russo Alex Evstigneev realiza em seu filme Botões Dourados. A obra focaliza crianças e jovens do sexo masculino recrutadas para a Guarda Nacional Russa. Criada em 2016, ela funciona como uma espécie de exército particular do protoditador Vladmir Putin, que a tem utilizado para reprimir adversários políticos.

Sob o pretexto de fotografar os meninos e rapazes, Evstigneev fez diversas imagens dos jovens em planos fixos, captando sonoridades e imagens ao fundo que são reveladoras da real natureza da Guarda e como ela explora e doutrina crianças socialmente mais vulneráveis, vindas de lares sem muita estrutura e cujos pais e responsáveis veem no órgão uma perspectiva de futuro melhor para elas.

As escolhas de planos e de imagens, músicas e discursos que são focalizados como pano de fundo assumem a centralidade da narrativa, mas há um outro tipo de centro também nos rostos enquadrados pela câmera fixa. As faces infantojuvenis e suas expressões dizem muito, há toda uma construção discursiva e simbólica nas escolhas delas que causam um efeito estético-simbólico.

Algumas personagens têm suas histórias apresentadas em forma de relato oral, sobrepostas aos rostos em plano fixo ou enquadrados em depoimentos filmados enquanto sua rotina no quartel general da Guarda é focalizada. Chama atenção, dentre várias imagens fortes, a de um rosto de um menino que aparenta ter no máximo uns 9 anos de idade, claramente emocionado, com os olhos vermelhos e marejados, contendo o choro, enquanto se ouve discursos de incentivo à ordem e ao patriotismo.

Outro momento emblemático do filme é a sequência de imagens externas da Guarda em atos públicos ostensivos, com discurso de apoiadores vociferando nacionalismo ao modo de Putin, exaltando o regime em vigência há mais de 20 anos (quando o presidente russo assumiu seu primeiro mandato) e atacando quem se opõe a ele como inimigos da pátria, que não amam a Rússia e tentam deturpar os valores do que seria a cultura autenticamente russa.

Num país de dimensões continentais, que se vende como democracia, mas mantém práticas de autoritarismo e centralização do poder próprias de regimes totalitários (em parte herança da antiga União Soviética e sua cultura de repressão), o recorte da Guarda que é subordinada diretamente à presidência e, por extensão, a Putin, é um microcosmo da autocracia instalada na Rússia, que joga com a vida e a trajetória de crianças condicionadas desde muito cedo aos ditames do que parece ser uma milícia oficial do establishment governamental.

O filme funciona como um potente registro de uma juventude cooptada e condicionada a seguir a cartilha de um Regime que tem pouca tolerância com divergências e cujos adversários notórios frequentemente aparecem mortos (a maioria por envenenamento), mas que a despeito disso, demonstra em registros audiovisuais uma profusão de subjetividades. O discurso fílmico enuncia, assim, que mesmo em meio a uma autocracia, há possibilidade de se resguardar algo de transgressor - e é nos jovens e suas expressões que isso melhor se reflete.

Há uma relação metalinguística desse discurso com o estratagema utilizado para obter o registro de imagens da Guarda, de resistência e hackeamento do sistema, afinal, eles são jovens e o porvir lhes pertence. Tiranos como Putin não duram para sempre e a arte também funciona como escape, ferramenta de reflexão e válvula propulsora de mudanças. Evstigneev realizou um filme profundamente político e assertivo no alvo das críticas sem, no entanto, resvalar no menor resquício de panfletarismo. Numa conjuntura de maniqueísmo e polarização, sob clima de ameaça constante à liberdade, seu documentário é um feito e tanto.

Botões Dourados*
Direção: Alex Evstigneev
Ano: 2019

*Filme visto na programação da edição 2020 do Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.