Copacabana Madureira

“Segura a marimba aí, mon amour!”
Inês Brasil

Se em Brasil S/A (2014) o cineasta recifense Marcelo Pedroso descreve seu filme, ao abordar de forma crítica e cáustica o desenvolvimentismo da Era Lula, como “a história de um País que virou CNPJ”, Copacabana Madureira (2019), do carioca Leonardo Martinelli, traz à tona um Brasil que levou as fake News e discursos memetizados da web para o centro do debate público-eleitoral, transformando essas narrativas em estratégia política de mobilização conservadora.

A famosa “mamadeira de piroca”, a polêmica (falsa) decisão de substituir o emblema de uma das notas do Real pelo rosto da cantora Pablo Vittar, a (igualmente falsa) imposição de mudar a frase impressa nas notas para “Brasil, País LGBT” e algumas outras sandices aparecem representadas em alegorias cênicas que as reconstituem de forma fidedigna. O absurdo e o ridículo que perpassam tais postulados são explicitados no documentário, que usa e abusa do humor e da linguagem típica da internet para fazer críticas e denúncias certeiras sobre como a manipulação política descarada foi adotada em larga escala nas eleições 2018 — e em espaços de convivência social que as aumentaram, com ênfase maior às igrejas neopentecostais.

Essa “estética do meme” que o filme adota, entretanto, não esvazia o teor político do seu discurso, muito pelo contrário: amplifica seus sentidos e os leva quase ao paroxismo, fazendo com que nos perguntemos: como foi possível termos chegado a isso? Como permitimos um disparate desses chegar a essa proporção? Em paralelo, a narrativa do filme faz uma crítica ferina à esquerda engajada das redes sociais, que crê que “lacrar com memes” e ‘textões’ pode ser tão eficiente quanto a militância de base — e que não enxerga que sua bolha, em boa parte embevecida pelos privilégios de raça e de classe social, se distanciou tanto da realidade do conjunto do povo brasileiro ao ponto de criar um abismo.

A narrativa do documentário intercala o discurso memético-performático com cenas reais de moradores dos bairros de Copacabana e Madureira, da cidade do Rio de Janeiro, em atos públicos na campanha eleitoral de 2018, que levaria Jair Bolsonaro e seu radicalismo ao poder. A junção de cenários aparentemente tão díspares, dada a força da realidade histórica, conflui numa simbiose tão orgânica quanto assustadora.

Na sinopse do filme de Martinelli se lê: “Eleições presidenciais. Notícias falsas. Prazeres e dores pelos bairros da cidade. Brasil, século XXI.” A escolha do recorte temático, temporal e geográfico coloca o discurso do filme como um microcosmo da realidade política nacional: do bairro nobre e boêmio ao subúrbio, a dor e a delícia de existir numa brasilidade tão ambivalente quanto tóxica.

Num dos segmentos ficcionais do documentário, vemos um menino negro perambulando por ruas e bairros cariocas. Sua caminhada é intercalada com os discursos inflamados, com as fake news e com um ódio politicamente direcionado, à violência e à barbárie. O jovem, alheio a essa conjuntura que lhe foi imposta e tomou o país de assalto, transita sem rumo e sem garantias. Ele é uma metáfora de outros milhões de brasileiros que, em sua frágil condição e sua invisibilidade, não estiveram no centro dos interesses da arena pública nas eleições de 2018 — foram postos a escanteio. Assim como a lógica científica, o bom senso e toda e qualquer noção mínima de razoabilidade e humanismo.

O humor do filme de Martinelli dialoga com a dor e se irmana com ela. Um filme híbrido, excepcionalmente bem formatado, discursivamente potente e que segue com uma atualidade que assusta, mas também faz refletir. Um ótimo exercício de cinema enquanto arte e afirmação política.

Copacabana Madureira
Direção: Leonardo Martinelli
Ano: 2019

Assista ao filme aqui.

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.