Cores e Botas

Utilizando de elementos saudosistas e nostálgicos que remetem à icônica década de 1980, o curta retrata algo que já deveria ter ficado pra trás: o racismo

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Se você nasceu no século XXI, provavelmente não teve contato com os diversos programas de auditório infantis que reinavam de maneira absoluta nas manhãs televisivas brasileiras entre 1980 até o começo dos anos 2000. Nessa época, a rainha absoluta dessa programação era a Xuxa, considerada a “rainha dos baixinhos”. Idolatrada por grande parte das crianças, a apresentadora/cantora chamava a atenção com seu carisma e sua beleza estonteante (afinal, ela tinha sido modelo), de corpo longilíneo, olhos azuis e cabelos lisos e loiros.

No seu programa oitentista de sucesso, Xou da Xuxa, ela contava com a ajuda das paquitas, suas assistentes de palco que, pasmem!, possuíam o biotipo semelhante ao dela: magras, brancas e loiras de cabelo liso, encaixando-se num padrão de beleza que ainda vigora nos dias de hoje. Não era de se admirar que muitas crianças quisessem ser como elas, espelhando-se no modelo de sucesso e beleza que era exposto à exaustão na TV (que naquela época era bem mais influente, mas isso não vem ao caso).

Mas e se essa criança não fosse magra? Não fosse branca? Não tivesse cabelo loiro (e muito menos liso)? Lhe seria negado o direito de estar na televisão? Se a televisão não tinha espaço pra você, qual seria o espaço apropriado a ser ocupado? Como ocupar um lugar onde você não se encaixa nos padrões/requisitos preestabelecidos pela sociedade? Quando esses padrões foram institucionalizados? Em Cores e Botas (2010), dirigido por Juliana Vicente, essas e outras questões surgem no decorrer dos quase 16 minutos em tela.

Em 1989, Joana (Jhenyfer Lauren) tem o sonho de ser paquita, assim como tantas outras meninas de sua época. Para tanto, vai participar de um teste de paquitas que ocorrerá no seu colégio. E apesar de saber todas as coreografias e todas as músicas, possuir o apoio da família e todo o figurino necessário para competir, há um porém: ela é negra. Seria a cor um empecilho para a concretização do sonho?

Utilizando de elementos saudosistas e nostálgicos que representam bem essa década tão icônica e repleta de transformações em diversos âmbitos, o curta retrata um passado cuja roupa não nos serve mais (salve, Belchior!), que é a falta de diversidade e representatividade de pessoas negras nas mídias e no meio do entretenimento.

Aqui o racismo estrutural é um tema abordado de maneira sutil, mas efetiva, suscitando questões sobre preconceito, pertencimento, merecimento, identificação, diferenças étnico-raciais e posições/contrastes sociais.

As músicas utilizadas no filme (Lua de Cristal e O Carimbador Maluco) dialogam com os problemas propostos no curta, como o fato de você ter que se encaixar em rótulos ou padrões para conseguir fazer parte de algo, indo contra a ideia ilusória de que “tudo pode ser, basta acreditar”. Muitas vezes, por mais que você queira e faça por onde acontecer, a sociedade lhe exige algo que está fora do seu alcance, como ter uma aparência que difere muito da sua genética, por exemplo.

Cores e Botas expõe esses problemas em diversos momentos, seja ao pintar o cabelo com papel crepom para tentar se adequar ao padrão imposto, ou jantar num restaurante onde a única família negra existente é a sua. E mesmo que esse passado não nos sirva mais (tendo em vista as discussões e alterações que estão ocorrendo cada vez mais nessa última década para uma maior inclusão e representação de pessoas negras na nossa sociedade), é triste e revoltante perceber que o racismo ainda é presente, que ainda existam situações semelhantes a essa (e bem piores até).

Infelizmente a cor de pele ainda é um impeditivo para a realização de sonhos de muitas Joanas, que batalham constantemente tentando reduzir as desigualdades e injustiças que sofrem. Mas tento me apegar e ser positiva, pensando que o cara lá de cima vai nos dar toda coragem que puder, para que não nos falte força pra lutar contra tudo isso. Para que, assim como Joana, encontremos uma saída onde a cor ou aparência não seja um determinante — um impeditivo — de sermos aquilo que queremos ser.

Cores e Botas
Direção
: Juliana Vicente
Ano: 2010

Assista ao filme aqui.

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