Entremarés

Documentário de Anna Andrade mostra a vida e o trabalho das mulheres da Ilha de Deus, em Recife

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É muito difícil encontrar obras como Entremarés (2018). Porque Entremarés é um filme que tem dentro de si dois filmes com estéticas e com discursos diferentes — que, não apenas destoantes, parecem se digladiar entre si.

Logo nos primeiros minutos do curta, é possível vislumbrar com clareza as intenções e os discursos do filme: elas se cristalizam de forma clara na imagem, nas vozes e nos sons.

É nítido o respeito imenso que Anna Andrade, a diretora, tem pelas figuras que retrata. Colhendo depoimentos de moradoras da Ilha de Deus, zona periférica de Recife, ela tece com habilidade um retrato daquelas mulheres e daquele local. É possível entender, em poucas palavras, o passado de cada uma delas, a relação com a família (mães solteiras, chefes de família), com o sustento, com a solidariedade que nutrem para com o outro e com a relação que elas têm com o local e com o resto da cidade.

Dando voz e mostrando o seu modus operandi, a diretora permite que a história seja contada não só pela fala, mas pelas imagens que circundam as personagens e pelas imagens de suas ações cotidianas.

É unanime que, apesar de viverem num bairro mal quisto pelos outros, as mulheres entrevistadas se orgulham do que são e do que podem fazer às margens do rio em que vivem. É das águas que tiram mariscos, peixes, camarões. E é com a riqueza oriunda da pesca que elas provém o sustento, brinquedos e artigos tecnológicos para seus filhos pequenos.

O olhar de Andrade para essas personagens é um olhar humano, extremamente humano. Ela as vê de maneira horizontal: em momento nenhum as exotifica, em momento nenhum as pinta como guerreiras e lutadoras. Ao invés disso, a diretora as mostra como são — e o espectador, entendendo as lutas diárias, seus passados e o cotidiano, chega sozinho a conclusão de que aquelas mulheres são, sim, guerreiras e lutadoras.

A construção é tão imaculada que causa um certo estranhamento quando o filme se divide e se transforma em outro. Sem prévio aviso, a sutileza das imagens e a verdade dos depoimentos acabam sendo trocadas por uma estética de comercial de turismo. De repente, não mais que de repente, o curta de Andrade aumenta o uso da trilha e coloca em câmera lenta alguns frames da paisagem. Redes de pesca são lançadas, pores do sol são enquadrados e closes em peixes são focalizados. O naturalismo é trocado por ares místicos, como se olhar de Anna se transmutasse.

A admiração presente continua lá. Mas, agora, a câmera deixa de ser testemunha e passa a forjar as mesmas coisas que foram vistas momentos antes com naturalidade. Encerrando o seu filme com um poema, lido por uma voz feminina externa (e não por uma das personagens cujos rostos serviram de ilustração ao longo do filme todo), a mensagem de Entremarés continua clara e continua a mesma dos primeiros minutos. Mas a execução é outra. O jogo narrativo é outro. É como se o mais importante não fosse mais as figuras mostradas no início, mas a ideia que alguém de fora tem daquelas mulheres.

Essa disparidade estética faz com que, ao final, Entremarés seja uma obra curiosa, onde um recorte de naturalidade e de uma aparente verdade caminha lado a lado com um olhar artificial que torna mítica aquela realidade. E por mais que esse olhar tenha como objetivo encontrar beleza num cenário que frequentemente é marginalizado, o esforço parece desnecessário porque a beleza, na verdade, esteve sempre ali, podendo ser vista e ouvida através dos depoimentos e das imagens, tão mais naturais, da primeira metade do filme.

Entremarés
Direção: Anna Andrade
Ano: 2018

Assista ao filme aqui.

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Thiago Dantas
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Uma espécie de Macabéa, só que mais trouxa. 31 anos, paulistano, comunicólogo e professor.