Estado Itinerante

A dura rotina de uma mulher presa a um casamento abusivo

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Imagine a seguinte situação: presa a um relacionamento abusivo, a cobradora de ônibus Viviana almeja o fim desse pesadelo, independentemente das consequências. Em todo momento de seu dia, procura forças para se desprender daquela opressão, de uma parada à outra. Apesar de não alcançar o objetivo, ainda alimenta a esperança da libertação.

Embora tenha uma trama fictícia, o curta Estado Itinerante (2016) não passa de um reflexo do cotidiano violento de muitas mulheres na mesma condição, numa história que vai além da premissa de entreter e toca numa notável ferida da sociedade: os impactos da violência doméstica.

Desde o princípio, a cineasta Ana Carolina Soares conduz o espectador pela ótica de Viviana — ou Vivi, como gosta de ser chamada. Nesse aspecto, a direção cria um vínculo entre o filme e o público, tornando sua protagonista mais próxima à realidade. Afinal, vemos seu dia-a-dia no transporte público, suas conversas informais com colegas de trabalho e até desentendimentos com motoristas de ônibus. São cenas que poderiam facilmente cair numa caricatura desastrosa e até alimentar estereótipos negativos sobre o brasileiro, mas o tom natural que foge do artificial que Soares adota não permite que isso aconteça.

À medida que a trama se desenrola, o público é apresentado a um sentimento de frieza da personagem, como se a própria vida não tivesse mais sentido. Dentro da rotina de Vivi, percebemos a necessidade de que a cobradora ponha máscaras para cada situação do dia, numa tentativa de afirmar que “tá tudo bem”. Além disso, a personagem encara a sua volta para casa como mais uma batalha e tenta adiá-la, tentando escapar de sua realidade. O medo parece falar mais alto, mas a a personalidade contida de Vivi parece estar prestes a explodir.

Cravando a relação degradante no centro da narrativa, Ana Carolina Soares poupa o público de uma violência gratuita e deixa esse fator subentendido diversas vezes, numa estratégia de perpetuar a visão de Vivi —chegando até a esconder a imagem do marido opressor. Essa escolha pode aparentar um certo “desleixo” da produção, mas flui naturalmente dentro de um cenário em que os símbolos fazem parte de quase tudo, não importando o nível da relevância.

Mesmo que a cineasta recorra à sutileza, ainda se pode observar o medo de Vivi nos mínimos detalhes, desde o incômodo barulho das motos que rodeiam a personagem e suas amigas num bar à respiração ofegante que a acompanha toda vez que sai do trabalho. Não se trata somente do pavor da rua, mas do que pode acontecer dentro do próprio lar. É; portanto, a maneira mais clara que a direção encontra de transparecer a sensação onipresente de insegurança que paira no ar, além das marcas físicas que a jovem carrega consigo.

No ofício, as catracas são companheiras e testemunhas da angústia da protagonista, encarnada nos olhares reveladores que dizem tudo quando o silêncio ecoa. Segura em cena, Lira Ribas, a Vivi, constrói uma mulher inquieta com as adversidades da vida e tem seu devido destaque, principalmente no momento em que dança com uma transexual num bar ao som da banda Guns N’ Roses. Nesse provocante trecho libertador, a personagem respira por alguns minutos até desabar no choro, a partir do momento em que percebe novamente a realidade que vive. Embora um pouco longa, a cena transborda sensibilidade e destaca a atuação de Ribas e seu envolvimento com Cristal Lopez.

Quando finalmente recupera forças para voltar à sua casa, Vivi pega a mala e sai com a esperança de não retornar mais. Nesse momento, o espectador não vê literalmente a cena, mas a sente só pela sensação de alívio da cobradora. É o desfecho de uma trama na qual o silêncio se mostra ensurdecedor e fala mais alto que as próprias palavras.

Assim, Estado Itinerante é uma obra que não preza pelas cenas físicas, mas pelo imaginário do público e, consequentemente, sua interpretação dos fatos, ainda que os detalhes rotineiros sejam nítidos. Embora Vivi tenha conseguido libertar e viver para contar história, muitas outras mulheres do mundo real não tiveram a mesma chance, enquanto outras tantas ainda vivem esse temor. Porém, a mensagem que fica é clara: nunca é tarde para se libertar daquilo que te reprime e trilhar seu próprio destino.

Estado Itinerante
Direção: Ana Carolina Soares
Ano: 2016

Assista ao filme aqui.

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