Guaxuma

“E a coisa mais divina
Que há no mundo
É viver cada segundo
Como nunca mais…”
Vinícius de Moraes

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O que resta quando não vivemos mais o passado não tão distante de nossas vidas? Para muitos, o nada permanece. Para a cineasta Nara Normande, sobram as doces lembranças de uma época inesquecível.

Com esse conceito e sob o cenário paradisíaco do interior de Maceió, o curta Guaxuma (2018) vem para ressignificar o poder das memórias e a importância de sua preservação, através da bela amizade entre Nara e Tayra, duas figuras que nem a abrupta partida de uma delas foi capaz de separar. Um olhar sensível numa animação que salta aos olhos do espectador, usando a areia como o fio condutor de toda a história.

Em todo momento, Nara Normande faz questão de manter um tom difuso entre o humor e a melancolia, principalmente nos diálogos recheados de informalidade. Afinal, estamos diante de duas crianças que vivem a infância intensamente nas areias alagoanas de Guaxuma. Nesse sentido, a produção acerta quando opta pelo colorido das animações, numa clara tentativa de aproximar o filme da realidade, sem a presença de artimanhas complexas para que o objetivo seja concretizado. São trechos que vão desde o primeiro contato de Nara com festas regadas a álcool e drogas promovidas pelos pais ao modo natural com que trata a sexualidade, mesmo num período que torna o tema um tabu quase criminoso, permeados por uma trilha sonora envolvente e um recurso estilístico que hipnotiza qualquer um.

Quando somos apresentados à amizade de Nara e Tayra (cuja cacofonia dos nomes representa o teor humorístico da relação), o ritmo do curta ganha um gás e tudo passa a fluir ainda mais naturalmente, numa intenção de falar sobre a relevância de uma na vida da outra. É a clara certeza de que há uma dependência entre as duas, ainda que sejam figuras independentes. Esse mecanismo talvez seja o maior brilho da narrativa, uma vez que tudo passa a girar em torno desse relacionamento mergulhado tanto na sutileza da infância e da juventude, quanto no amadurecimento que o tempo propõe.

À medida que a trajetória de ambas é contada, as simbologias crescem ao redor da praia. Afinal, a ideia dos grãos de areia sempre remete ao tempo, como uma espécie de cápsula que define a temporalidade de cada um.

Aqui, não é somente o amor que une uma à outra, mas sim a praia, que serve como uma ponte saudosista e, por vezes, enigmática. Além disso, os corpos das personagens cercados por conchas e espinhos de ouriço simbolizam o crescimento tanto físico, quanto mental, sempre num contraste com as imagens reais que Nara adiciona ao curta. É um recurso que foge da premissa de se reter à animação e engrandece ainda mais o produto, criando um resultado satisfatório.

A ferramenta sonora também chama a atenção. Não ficamos limitados apenas à voz da narradora. Ouvimos — e sentimos — o barulho das conchas, do mar e até do vento suave, como se fosse um sopro de alguém. Tudo isso para firmar o espectador dentro da obra e da vida das personagens, numa tentativa de estabelecer um diálogo e transformar a ficção na mais absoluta realidade, até mesmo no silêncio que ecoa quando as duas amigas são separadas, por meio de uma fotografia despedaçada que faz alusão ao sentimento de saudade que transborda naquela situação. O colorido dá espaço para a escuridão, embora o público ainda sinta a vivacidade do início.

Por fim, Guaxuma não se trata de uma simples biografia de sua própria autora. Vai além dessa premissa e faz o exercício de revisitar o passado, sempre na ideia de aproveitar cada momento da vida antes que seja tarde demais. As circunstâncias podem ter separado as duas amigas fisicamente, mas uma sempre esteve no coração e na memória da outra. O afago que permeia as lembranças se mostra uma das maiores belezas da trama, assim como a maneira carinhosa com a qual Nara fala de Tayra, num plano irretocável.

As cortinas se fecham, os sonhos continuam e o saudosismo se mantém tão vivo quanto antes — ou até mais. Uma história linda de se ver — e de se sentir.

Guaxuma
Direção: Nara Normande
Ano: 2018

Assista ao filme aqui.

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