Linha.

Curta de Francisco Lira estabelece um jogo de aproximações e distanciamentos de dois personagens para falar sobre violência policial e racismo estrutural

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Começando do final: um jovem negro morre com um tiro nas costas quando um policial branco atira nele por vê-lo pondo a mão no bolso. O que o jovem, agora morto, queria era pegar o crachá da empresa em que trabalha e mostrar quem ele era.

A brevidade dos pouco mais de três minutos de Linha. (2018), filme animado de Francisco Lira, pode passar a olhares menos atentos a falsa impressão de que o curta trata de um assunto importante de um jeito repetitivo, de modo que os maiores atrativos sejam somente seus aspectos visuais e sonoros, que emulam os populares vídeos de lo-fi music que circulam no Youtube e afins. Mas não, o curta é mais do que isso. Muito mais do que isso.

Isso porque Lira enriquece a produção com detalhes e simbologias que transcendem o usual, humanizando as personagens e as situações.

Desde o começo, quando somos apresentados aos protagonistas da história, percebemos que há um jogo de aproximações sendo estabelecido diante de nossos olhos: dois personagens parecem morar num mesmo bairro pobre de uma cidade urbanizada; dois personagens se despedem de seus afetos e partem para o trabalho; dois personagens utilizam-se do transporte público para chegar a seus destinos e dois personagens vestem suas respectivas fardas para enfrentar o dia.

Mas se Lira os aproxima a partir de um mesmo espaço geográfico e de uma mesma rotina, ele também os distancia quando mostra detalhes da jornada de seus personagens. Isso pode ser percebido quando pensamos no trajeto de cada um separadamente.

Quando vemos o personagem negro, que mora num bairro pobre de uma cidade urbanizada, se despedir de uma mulher jovem e seguir em direção ao trabalho, percebemos que ele lida com olhares racistas de desconfiança durante toda a jornada. Logo de cara, ao entrar num ônibus, ele não se senta no banco vago porque a pessoa que ocupa o assento ao lado faz questão de pôr uma mochila sobre ele. Essa mesma rejeição é demonstrada mais à frente, quando, agora num bairro nobre da cidade, uma velha com um cachorro fecha a cara e encara o moço como um intruso, como se ele não devesse estar ali. Nesse momento, o personagem sem nome tira do bolso um crachá e entra num condomínio fechado. Veste-se com a farda cinza da equipe de limpeza e parte para o início de suas atividades. O vemos cumprimentar um morador do local e não receber resposta. Se antes ele, sem uniforme e sem crachá, era visto pelos brancos racistas como uma ameaça, agora, uniformizado e integrado ao local, ele se torna apenas invisível.

A identidade da personagem é apagada não só pela resposta nula do morador, mas também de um outro modo: o crachá que dá passibilidade ao homem não carrega o nome dele. Onde o nome deveria se fazer presente, lemos apenas a palavra “ele”.

O mesmo não acontece com o protagonista branco. Embora a sua rotina matinal seja idêntica a rotina do personagem negro, ele, quando calça as suas botas e veste a sua farda de policial, usa também uma plaqueta de identificação em que se lê não apenas o seu nome, como também a sua patente. Assim, quando o personagem sai num carro de polícia para dar início às suas atividades, ele deixa de ser o morador da periferia que vive com a avó e passa a ser o Sargento Pacheco.

Esse jogo de identidade e simbologia, feito com os crachás e as fardas, demonstram um aguçado olhar acerca do racismo estrutural em que os personagens — e nós, enquanto sociedade — estão (estamos) inseridos.

Por dizer tanto em tão pouco tempo sem uma única palavra oralizada, Linha. se mostra muito mais do que parece ser à primeira vista, uma vez que seus aspectos discursivos soam tão ou mais interessantes quanto o deslumbre visual e sonoro que a obra propicia.

Um grande filme que, com delicadeza e atenção aos detalhes, lança olhares e questões sobre um grande problema.

Linha.
Direção: Francisco Lira
Ano: 2018

Assista ao filme aqui.

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Thiago Dantas
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Uma espécie de Macabéa, só que mais trouxa. 31 anos, paulistano, comunicólogo e professor.