Mamãe Tem um Demônio

Curta de terror mistura elementos icônicos dos anos 80 com comédia para contar uma história macabra

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As décadas de 1980 e 1990 no Brasil, quando se fala em TV aberta, foram marcadas por símbolos, tão fortes e expressivos que os nomes dos artistas vinculados a eles não precisam ser citados para que eles se tornem reconhecíveis. Uma bota branca. Um sinal de nascença na perna. Um jeito sussurrado de cantar, misturando idiomas. Uma tragédia que interrompeu uma carreira no auge. Todos esses ícones, em maior ou menor escala, cresceram junto com as crianças do período e, até hoje, geram discussões, teorias da conspiração e debates acalorados conforme escala a nostalgia.

Entre tantos símbolos, a morte dos integrantes Mamonas Assassinas após um acidente de avião, sem dúvidas, foi o que imprimiu a marca mais evidente nas crianças daquela época. Ao falecerem no auge do seu sucesso, os rapazes da banda deixaram no imaginário de uma geração o questionamento sobre o que teria sido deles se a tragédia não tivesse acontecido.

Embora essa seja uma resposta impossível, ela é também um dos motivos para que, até hoje, a banda seja comentada de uma forma carinhosa. Durante os debates sobre esse assunto, a depender do ambiente, a discussão ganha argumentos e tons distintos: eles teriam se repaginado e ainda fariam sucesso; a banda tinha prazo de validade; e, por vezes, surgem teorias de que a morte foi um sacrifício — hipótese que é frequentemente amparada por entrevistas dos integrantes falando a respeito de maus pressentimentos e, pasmem, aviões que caem. Entretanto, uma coisa se torna inegável independente dos rumos das discussões: os Mamonas Assassinas ainda têm fãs, dispostos a rememorar e a destacar o seu valor para quem quiser (ou não) ouvir.

Todos esses ângulos discursivos e possibilidades sobre a morte trágica de um ídolo são explorados em Mamãe Tem Um Demônio, curta-metragem dirigido por Demerson Souza. No filme, a cantora fictícia Tetê Barilove está no auge do sucesso nos anos 90. Somos apresentados a ela através de uma performance na TV, cheia de energia e maiôs cavados.

De forma simultânea, conhecemos Beni, uma fã mirim de Tetê. Ela assiste empolgada à apresentação, tarde da noite, enquanto a sua mãe supostamente dorme ao fundo da cena. Além dos cortes para mostrar Beni, a sequência de abertura também nos mostra Tetê em seu camarim. Com um livro preto, cuidadosamente colocado no centro de um círculo de velas vermelhas, a artista parece assustada e retira uma arma da bolsa. Posteriormente, vemos a cantora morta e Beni abraçada a um disco de vinil, incrédula. Após descobrirmos que, na verdade, a mãe da menina também morreu naquela noite, o abraço no disco ganha ainda mais peso, visto que Beni parece sofrer mais pelo ídolo. Então, os anos passam e essa ideia se confirma através de uma série de diálogos e itens cênicos em Mamãe Tem Um Demônio.

É exatamente no tempo presente, 2020, que Demerson Souza passa a oscilar entre a comédia e o horror de uma forma mais evidente e, então, o filme ganha ainda mais força. Embora quem assiste se renda facilmente a tudo o que a cena de abertura tem de familiar — especialmente quando se fala na incrível trilha sonora, composta por músicas chiclete que parecem ter saído diretamente de um programa de auditório exibido aos domingos -, é essa mistura de gêneros cinematográficos que evoca outros elementos da década de 90 e faz com que a gente entenda exatamente onde o diretor quer chegar com o diálogo Beni e Karen, sua amiga, sobre a morte de Tetê Barilove e os “mistérios” que cercam o ocorrido.

Portanto, quem assiste não é exatamente surpreendido com a “virada” no terceiro ato do filme. Porém, talvez, a surpresa não fosse mesmo a intenção e, na verdade, ela sequer importa. Abraçando a despretensão (um dos melhores elementos da comédia de horror) e flertando abertamente com o seu segmento trash, Demerson Souza constrói uma série de sequências surreais e hilárias envolvendo tudo o que o senso comum diz sobre ocultismo, demônios, satanismo e pactos com forças sobrenaturais. Em meio a efeitos especiais propositalmente precários e um texto delicioso, o diretor de Mamãe Tem Um Demônio consegue construir um desfecho que assusta na mesma medida em que provoca o riso, além de encerrar definitivamente os questionamentos sobre a figura (quase) mítica de Tetê Barilove.

Assim, ao usar elementos que provocam nostalgia de uma forma que não pretende deixar ninguém de olhos marejados, Mamãe Tem um Demônio e Demerson Souza trazem frescor a símbolos já tão batidos e enraizados no imaginário dos brasileiros. De certa forma, a escolha de confirmar teorias da conspiração ao longo do filme é bastante ousada. É também o que faz com que o curta-metragem se destaque e se afaste de algo que poderia ser somente mais uma homenagem a um período que foi sim marcante, em especial em termos de celebridades, mas exaustivamente abordado em plataformas e suportes diversos. Portanto, apostando em um gênero inusitado, Mamãe Tem um Demônio se consagra como uma experiência cinematográfica interessante para quem cresceu cercado de conspirações, supostos pactos dos seus ídolos de infância e se faz perguntas sobre a veracidade deles. Mas, talvez, não saber seja mais vantajoso do que descobrir um demônio na cozinha de casa.

Mamãe Tem Um Demônio
Direção: Demerson Souza
Ano: 2019

Infelizmente, o curta não está disponível para ser visto online. Assista ao trailer do filme aqui.

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