Playback. Ensaio de uma Despedida

Através de imagens de arquivo, documentário reconstrói a trajetória de personagens da comunidade LBGT argentina dos anos 1980 e 1990

Muito se fala hoje da potência do arquivo audiovisual, das simbologias múltiplas que as imagens em movimento evocam e das narrativas que estão contidas ou que podem surgir quando estas são analisas, revisitadas, postas em perspectiva, sobretudo com hiato temporal que permita uma reflexão mais amadurecida.

Há vários documentários que usam registros audiovisuais de arquivo como matéria-prima basilar da sua narrativa, em perspectivas diversas. Entre eles, há os que adotam como ensaísmo e escrita de si, caso de Santiago (2007) e No Intenso Agora (2018), ambos de João Moreira Salles e obras que incorporam a dimensão da performatividade e da recriação, procedimento adotado em Histórias que Contamos (2012), de Sarah Polley. Playback. Ensaio de uma Despedida, da cineasta argentina Agustina Comedi, parece abraçar parcialmente a proposta estilística das obras supracitadas.

O filme realiza um ensaio íntimo-pessoal e também performático sob imagens de arquivo de uma boate de shows de Drag Queen na cidade de Córdoba, na Argentina. Por meio de registros de eventos realizados nas décadas de 1980 e 1990, o documentário constrói sua narrativa interligando sequências de arquivos feitos em videotape, focalizando personagens e suas trajetórias. Uma narração em off de uma delas conduz a narrativa e contextualiza as histórias e os desdobramentos na vida das figuras em relevo.

A narrativa do documentário é centrada numa personagem-chave, que é emblemática do período abordado e seu recorte dos shows de drags que performavam divas da música em apresentações onde cantavam em playback. Na performance, entretanto, criavam em elementos como gestual, figurino e coreografia, algo de original, luminoso, potente. Havia ali um universo particular de liberdade, resistência e organicidade diante da opressão sofrida pela comunidade LGBT fora das paredes da casa de shows.

Um inimigo invisível seria o maior algoz de todos: o vírus do HIV que atingiu em cheio a referida comunidade, nos anos 1980. O tratamento eficaz contra a doença só vira a ser acessível a partir da segunda metade da década de 1990, de modo que muitas pessoas infectadas não conseguiram esperar e pereceram pelo caminho.

No filme, um dos trechos da narração de La Delpi, sobreposta a uma imagem de uma entrevista, revela parte do simbolismo tanto das imagens quanto da memória que o filme evoca: “Noite após noite, playback após playback, nós roubávamos das divas um pouco da eternidade que nos era negada”.

Ao fazer um resgate simbólico, discursivo e identitário a partir das imagens que reconstroem a história de algumas figuras, o filme reverbera o espírito de toda uma geração, bem como de um nicho social, embora tenha na dimensão humana — emocional e singular — seu maior trunfo e potencial de empatia e alteridade. O micro, como quase sempre, representa o macro, o particular se torna coletivo e a memória afetiva confere potência e poeticidade a esse construto. Um belo exercício de estilo e de afetividade cinematográfica.

Playback. Ensaio de Uma Despedida*
Direção: Agustina Comedi
Ano: 2019

*Filme visto na programação da edição 2020 do Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.