Preto no Branco

“Não basta não ser racista. É necessário ser antirracista também.”
Angela Davis

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Imagine a seguinte cena: Roberto Carlos, um rapaz negro, após o fim de seu expediente noturno, corre atrás do ônibus. Em uma infeliz coincidência, esbarra sem querer em Isabella, uma mulher branca, ao mesmo tempo em que ela é assaltada. Sem pensar duas vezes, a moça acusa o jovem, que é levado à delegacia.

No local, ainda sem entender nada, descobre o motivo de sua prisão: foi acusado de roubo, mesmo com falta de provas. Desesperado, jura inocência. A mulher, por sua vez, mantém a acusação. Quem diz a verdade? É nessa discussão que mora a atmosfera do curta Preto no Branco (2017), do cineasta Valter Rege.

A princípio, a direção cuidadosa cria um cenário que tenta remeter à realidade. Afinal, quando pensamos na cena de Roberto Carlos correndo atrás da condução, temos em mente os vários brasileiros que vivenciam o mesmo cotidiano, todo dia. Dentro desse aspecto, talvez resida a maior riqueza da narrativa, uma vez que parte do público acaba se sentindo representado com a linguagem popular que inicialmente o filme propõe, em um espiral de cores e sons que aproxima a ficção do mundo real.

No entanto, o clima e o ambiente do curta mudam quando o protagonista é preso. De forma brusca e necessária, Rege assume um tom denso e praticamente claustrofóbico, fazendo com que o espectador sinta aflição pelo estado em que Roberto se encontra e pelo jogo de interrogações que os policiais realizam e o contraste promovido pela produção. De um lado, o acusado num cenário fechado e escuro. Do outro, a suposta vítima num canto iluminado, sustentando sua versão. Nesse sentido, o roteiro tenta recriar uma espécie de tribunal inquisitório, tal qual a Idade Média, sempre numa relação paradoxal entre o inquisidor e o réu, sem que este pareça ter muitas chances a seu favor.

Em todo momento, o benefício da dúvida permeia no ar até a comprovação da inocência de rapaz. Nesse ponto, a narrativa deixa claro o racismo estrutural: quantos Robertos Carlos não foram “confundidos” com assaltantes, em virtude de um simples ato “suspeito”, como correr? Mas o correr, aparentemente, só é suspeito por causa da cor da pele. Se o jovem fosse branco, a mulher o acusaria tão facilmente? São questionamentos possíveis quando pensamos de maneira ampla em nossa sociedade. Basta olhar a porcentagem da população negra em periferias brasileiras e constatar que a questão racial ainda é forte. E atual. Principalmente no momento em que nos deparamos com os constantes casos de abordagem policial violenta contra a população negra.

Felizmente, Roberto teve um final diferente de muitos na condição dele. Sua inocência foi comprovada e ele foi rapidamente solto, graças a uma fita da câmera de segurança. Viram que o ladrão era outro. E só tiveram acesso ao vídeo depois de muito apelo do rapaz, que já se via em um estado de completo desespero e preocupado com a mãe. Esse zelo — mesmo quase despercebido — engrandece o roteiro. Afinal, ele já havia sido preso pelo mesmo crime do qual foi acusado e sabia o que aconteceria com um negro acusado injustamente.

Por fim, Preto no Branco traz uma mensagem clara sobre as raízes de um sistema racista. Para muitos, o direito à defesa é constantemente negado. Sobreviver como negro — e pobre — no Brasil é árduo e a luta é diária.

Roberto Carlos poderia não estar vivo para contar a própria história. Sempre soube disso e reescreveu sua jornada. Toda aquela aflição (aqui, vale ressaltar a atuação de Marcos Oliveira, intérprete do protagonista) visível nos olhos do personagem se transformou em alívio no fim. Saiu de cabeça erguida rumo a mais uma luta e deixou sua lição. Lição esta que tocou na ferida do racismo. Era ficção falando com a dura realidade de muitos.

Preto no Branco
Direção
: Valter Rege
Ano: 2017

Assista ao filme aqui.

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