Rafameia

Filme aborda a violência e as tensões impostas às mulheres no contexto do espaço urbano

a atriz e cineasta Mariah Teixeira em cena de Rafameia (2019), co-dirigido por ela e Nanda Félix

A primeira imagem de Rafameia é um plano aberto que mostra uma panorâmica do Centro de João Pessoa (PB) visto do alto de um prédio. A tela de proteção da varanda tem um buraco grande no meio, evidenciando a vulnerabilidade do espaço. Esse quadro serve de metáfora para a temática do filme: as lacunas e, em alguns casos, a ausência de redes de apoio para mulheres no contexto urbano das grandes cidades.

Vemos em seguida a protagonista e co-diretora do filme, Mariah Teixeira [Baixio das Bestas (2007), Sol Alegria (2018)] na pele da protagonista Carmen, uma jovem mulher de classe média que lida com as demandas e dilemas do cotidiano. Imersa em afazeres profissionais e domésticos, ela recebe a entrega de uma máquina de lavar feita pelo entregador, interpretado por Daniel Porpino [Desvio (2019), Aquarius (2016)]. A visita aparentemente banal ganha uma atmosfera de tensão crescente quando há uma escalada de conflito nos diálogos entre as personagens e o sexismo se desvela nos pequenos abusos e atitudes invasivas tomadas pela figura masculina.

Como forma de autodefesa, a protagonista tenta manter a calma e evoca a figura do marido que vai chegar — detalhe: ela namora, mas não é casada nem possui aliança no dedo, aspecto focalizado na sequência ao mostrar as mãos dos dois num plano fechado e um elemento a mais na escalada de tensão na narrativa. Não é o suficiente para intimidar o macho que se quer alfa e é inconveniente e acintoso até o último instante de sua permanência no recinto.

A partir daí seguem-se situações que ilustram as relações de poder, o machismo e o conflito social que perpassa a vida de Carmem e de outras mulheres com quem ela cruza: a vendedora de uma loja num shopping popular que enxota uma senhora pedinte, a conversa com mãe ao telefone, em que esta relata casos de violência envolvendo mulheres, a menina criança e sem vez ou voz.

O diálogo da protagonista com a mãe ao telefone é um dos momentos emblemáticos do filme: a figura materna a usa como uma divã e despeja todos os seus temores e ainda adverte a filha para não sair de casa à noite, já que está tudo entregue aos bandidos e não há nenhuma estrutura de segurança efetiva, uma verdadeira “rafameia”, neologismo que dá nome ao filme e que é uma espécie de gíria local para definir “balbúrdia”, situação de pandemônio e confusão sistemática.

Carmen tenta abstrair o temor, mas cercada de violências simbólicas e machismo por todos os lados se vê praticamente só, com uma rede proteção frágil e com grandes lacunas. Outra sequência simbólica é a que a protagonista, que é síndica do prédio em que mora, questiona o porteiro Seu João, vivido por Buda Lira [Aquarius (2016), Bacurau (2019)], quanto à entrada de uma equipe de eletricistas para realizar um reparo que não fora autorizado por ela e se vê obrigada a fazer valer sua voz de autoridade mesmo enfrentando o sarcasmo sexista de um dos operários, interpretado por Thardelly Lima [Divino Amor (2019), Bacurau (2019)].

O filme constrói a narrativa reforçando a dimensão cíclica dos abusos e violências que estão presentes no cotidiano das mulheres, reflexos do machismo estrutural impregnado nos hábitos e nas estruturas físicas e simbólicas da cidade. Desde a geografia urbana, até as situações mais banais, passando por contendas mais sérias, fica evidente que isso faz parte de um ciclo bem alicerçado, que se reproduz e se repete.

A opção do filme é pela assertividade discursiva, porém, mantendo sutilezas e se desviando de panfletarismos, o que é um mérito inequívoco do roteiro, mas sobretudo da realização das diretoras Mariah Teixeira e Nanda Feliz, que também são as roteiristas. A forma como elas compõem os quadros e encadeiam as sequências faz com que cada plano tenha um simbolismo preciso, quase cirúrgico, que corrobora imageticamente o discurso da obra e ajuda a construir sua atmosfera dramática.

Outro ponto forte é o desempenho do elenco, começando pela composição irretocável da Mariah, que consegue imprimir organicidade, força, fragilidade e resignação a uma personagem que corria o risco de ser arquetípica. Os demais integrantes, atores paraibanos de renome que fazem participações no filme — Daniel Porpino como o entregador que comete assédio, Suzy Lopes [Bacurau (2019), Fim de Festa (2020)] como a vendedora reacionária, Buda Lira como o porteiro prestativo, Thardelly Lima como o operário machista e abusado, dentre outros que fazem pequenas pontas — estão excelentes e contribuem para que as demais figuras humanas representadas, mesmo com pouco tempo de tela, não se tornem só mais um arquétipo, mas sejam parte de um mosaico humano autêntico e bem articulado.

Rafameia é uma produção que parte do individual para o coletivo, do espaço privado para o público, das violências simbólicas para um prenúncio recorrente de concretização física delas, das barreias sociais visíveis e invisíveis e, por fim, do condicionamento imposto às mulheres pela estratificação social do patriarcado desde a primeira infância até a vida adulta. Um registro pungente, contemporâneo e urbano de como os gestos e posturas banais e pequenos abusos sexistas do cotidiano são parte de um ciclo nocivo que parece reverberar de outras formas e por todos os lados, mesmo quando há resistência.

Rafameia*
Direção: Mariah Teixeira e Nanda Félix
Ano: 2019

*Filme visto na programação da edição 2020 do Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.