República

Grace Passô transita entre o terror, a distopia e o drama (por sobrevivência) para falar exatamente do Brasil de 2020

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Em 2020, tem se tornado comum encontrar análises sobre a situação atual do Brasil. Sociólogos, especialistas em política e historiadores tentam, de dentro do olho do furacão, compreender as nuances de algo que parece escapar a qualquer tipo de categorização. Entender a História enquanto ela acontece, ainda que ela ande em círculos quando se fala de Brasil, é algo que, embora necessário, parece uma abstração, baseada em projeções, teorias e memórias, mas abstração. E é por isso que República (2020), curta-metragem de Grace Passô filmado durante a quarentena, funciona tão bem.

A arte não depende de fatos, explicações ou embasamento em dados. Ainda assim, ela pode ser política, social e documento histórico. E ela pode surgir do olho do furacão sem que o seu sentido se perca ou se esvazie. Logo, ela pode ser abstração. As possibilidades para se falar de um mesmo tema são outras e mais amplas. Sabendo disso, Grace Passô transita entre o terror, a distopia e o drama (por sobrevivência) para falar exatamente do Brasil de 2020.

Sozinha em seu quarto, ela recebe um telefonema misterioso. Nunca se ouve quem está do outro lado e tudo passa pelos filtros da personagem de Passô, a única que efetivamente vemos durante todo o curta. A partir dessa ligação, assistimos a descrença e a ideia de que o interlocutor “acredita em tudo o que escuta” se transformar em desespero. A câmera, sempre próxima do rosto da atriz, permanece fixa e fechada nas expressões de Grace, como se aguardasse o mesmo tipo de explicação que quem assiste.

E, então, em um segundo telefonema, descobrimos o que está acontecendo. Trazendo a distopia para República, mas sem o tom de que esse conceito é a única explicação possível para o cenário brasileiro atual, Grace Passô afirma que “o Brasil acabou”. Na verdade, o país é fruto do subconsciente de alguém que está adormecido. Uma abstração. E, então, nada mais importa. Isolamento social e crise, por exemplo, se anulam se a “raiz de todos os males” não é mais algo concreto.

Por um tempo, República transita por essas ideias até que uma virada metalinguística expõe uma discussão ainda mais pungente: para algumas pessoas, o Brasil sequer começou.

Partir do individual para falar do coletivo pode ser um risco, mas em República a escolha potencializa a atuação de Grace Passô, que funciona como documento dos tempos atuais. Afinal, são tempos vividos à seco, na solidão de um quarto e que perpassam todas as emoções que a artista, com maestria, consegue usar o seu rosto e voz para transmitir. Muito da grandeza do curta-metragem se deve à sua performance segura e forte o bastante para comunicar tudo o que está no subtexto.

Assim, República é como toda a arte que possui traços políticos deveria ser: fruto do seu tempo, mas capaz de extrapolá-lo e continuar comunicando de fora do olho do furacão.

Em tempos de dificuldades (amplas e diversas) para a produção cultural, Grace Passô conseguiu realizar um trabalho importante — como atriz, roteirista e diretora -, rico e que precisa ser descoberto por todo mundo que tenta organizar os seus pensamentos em meio às ruínas.

República
Direção: Grace Passô
Ano: 2020

Assista aqui.

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