Rosário

Filme narra cotidiano de uma mulher com mais de 40 anos e suas relações com o território, os afetos e valores sociais

Uma senhora com seus mais de quarentena anos bem-vividos, sem filhos, que cuida de sua barraca de flores no Mercado de Casa Amarela, no Recife, fala manso, é tranquila, gosta de ficar em casa e vive recusando pedidos para sair, recebe o sobrinho e uma amiga e outra de modo bem esporádico. Poderia ser apenas mais uma história aparentemente banal, mas Rosário, filme que leva o nome da sua protagonista, constrói sua narrativa por meio de uma poética do cotidiano que singulariza seu enredo, dá relevo a pequenos aspectos e, além de humanizar a personagem, lhe confere caracteres de heroína do dia-a-dia — sem, no entanto, nunca resvalar em messianismo ou maniqueísmo, o que mostra que ela é bem mais do que o arquétipo social abarca.

Vemos Rosário sair para as compras, caminhar de volta para casa, subir a escadaria do morro da comunidade onde vive, vislumbrar a cidade de cima e falar sobre a vida com seu sobrinho Neto, vivido pelo rapper Okado do Canal. Os diálogos travados entre as duas personagens, assim como os silêncios, são reveladores da abordagem discursiva do filme: a perspectiva de construir algo vivendo numa realidade onde a estrutura social não favorece, o olhar de temor quando ela e ele, duas pessoas pretas e periféricas, num dos trechos do caminho se depararam com uma viatura policial.

Nessa cena, se ouve o som do veículo que, embora não seja mostrado, parece andar mais lentamente com a intenção de coagir e intimidar, o que se reflete na expressão da tia e do sobrinho.

As notícias que Rosário ouve na rádio sobre feminicídio e violência policial são outros exemplos que corroboram o discurso do filme sobre a vida e a morte num cotidiano em que parece que se vive num limiar entre esses extremos, porém sem nunca perder a ternura, a alegria e, sobretudo, a resiliência.

A ideia de sororidade também aparece fortemente marcada no discurso fílmico, tanto num eixo afetivo entre a protagonista e sua amiga Cleide, interpretada maravilhosamente por Clebia Santos, que trabalha como feirante do mesmo mercado, quanto na ideia de “uma por todas e todas por uma” e “nenhuma mulher a menos”. Não há aqui, entretanto, um feminismo nos moldes acadêmicos ou midiáticos, com discursos polidos, slogans ou gritos de guerra, mas um movimento orgânico e convicto de apoio mútuo que se afirma na cumplicidade e no fortalecimento entre as mulheres.

Juliana Soares e Igor Travassos, cineastas que dirigiram o filme, constroem a narrativa de forma fluida e muito consistente, com um lirismo e uma organicidade que alcançam um resultado que é naturalista e ao mesmo tempo poético e político, repleto de camadas de significação dispostas na estrutura e na linguagem fílmicas, sem panfletarismos, jargões ou caminhos óbvios.

Um triunfo incontestável para que o filme tenha a força que tem é a escalação do elenco, com destaque para a protagonista Laís Vieira, que se despe de vaidade e faz um mergulho certeiro no universo afetivo da personagem-título. Em todos os momentos que a câmera focaliza Rosário é possível ver como a composição de Laís consegue, em pequenos gestos, olhares, expressões, transmitir um oceano de significados, que vão se amplificando e ganhando uma força estupendo à medida em que a narrativa avança e caminha para seu desfecho.

Um filme sobre uma mulher preta, nordestina, periférica, de meia-idade, solteira, sem filhos que, à despeito de todos esses arquétipos e estereótipos, mostra que vida é e pode ser muito mais que o discurso pronto que é vendido todo dia — e que, mais que desejável, resistir pelo afeto e apoiar as pessoas se posicionando quando necessário é o único caminho de (sobre)viver com integridade.

Rosário
Direção: Juliana Soares e Igor Travassos
Ano: 2019

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.