Sem Asas

“Sinto um frio tomar o meu corpo
quando ele demora a chegar
[…] Vai que é confundido?
Ter essa pele nos faz um ponto:
um ponto negro na massa de tiro.
[…] Ser preto e pobre é um risco.
Eu só quero beijar o meu menino.
Cheirar e de tanto abraçar trazer ao meu ventre,
proteger com unhas e dentes,
pra que a noite passe e o perigo esmoreça.
Oh, meu Deus, cadê esse menino que não chega?”

Jairo Pereira

Sem Asas (2019) é um filme repleto de afeto.

Desde seu epílogo, a narrativa se esmera em ressaltar a naturalidade das relações familiares de seus personagens e sua dimensão afetiva, demonstrando que uma família composta por pessoas negras não se difere, em essência, de nenhuma outra família branca quando a questão são os vínculos que os unem: a amor, o cuidado, as brincadeiras, a cumplicidade, os “puxões de orelha”, as situações inusitadas. O mosaico está todo ali.

Mas se ao mesmo tempo que a obra de Renata Martins situa a família nas semelhanças com qualquer outro núcleo familiar, o enredo e a narrativa também evidenciam que não se trata de uma família qualquer — não numa realidade como a nossa. O diálogo natural do pai com o filho, ao usar o marcador com uma frase ao estilo “homens como nós precisam sempre se esforçar mais, estar um passo à frente” tem um peso simbólico forte, mas não está alicerçado numa pressão ou discurso panfletário. É uma conversa entre pai e filho, à mesa do café, acompanhada pela mãe que ouve tudo enquanto lida com demandas de seu trabalho. Há todo um construto cênico e discursivo para que a sequência flua sem grandes efeitos dramáticos, como acontece na vida.

Toda essa fluidez e naturalidade, no entanto, aparece permeada por uma expectativa de quebra: algo está prestes a acontecer com essa família — e não é algo bom. Quem será atingido, como e principalmente: quando?

A decupagem das cenas aliada à montagem primorosa de Cristina Amaral, uma das mais experientes montadoras do cinema brasileiro, é entrecortada por momentos de ludicidade e descontração, ajudando a gerar uma atmosfera de expectativa. As personagens são focalizadas de modo que suas expressões e sensações “respirem”, são rostos e emoções construídas para que haja uma identificação entre o sujeito da encenação e o expectador. Considerando a curta duração do filme, o modo como a direção atua nesse construto é primordial para atingir o resultado pretendido.

A qualidade e o entrosamento do elenco idem. Grace Passô, como a mãe, empresta toda sua superlativa capacidade de dizer muito em pequenos gestos, olhares, expressões, modulações de voz e empostação do corpo: sentimos o que ela sente e percebemos a dimensão do todo sem que seja preciso mais que uma fração de segundo onde a câmera foca sua fisionomia. O rapper Melvin Santhana, por sua vez, traz a docilidade firme do pai que sabe ser incisivo quando necessário, mas sem nunca perder a ternura ou macular o semblante com aquela expressão taciturna tão comum aos arquétipos da masculinidade negra. Tal qual seu companheiro no rap, Emicida, a personagem de Santhana parece fazer a opção consciente pela doçura, sem alienações, submissão ou resignação. Já Kaik Pereira, que interpreta Zu, filho do casal e protagonista, caiu como uma luva na pele do menino que é resguardado em sua ingenuidade, mas sempre instado a ser cauteloso e estar atento as situações e a estrutura que o rodeia.

Na sinopse de Sem Assas, está descrito que “Zu é um garoto negro de doze anos. Ele vai à mercearia comprar farinha de trigo para a sua mãe e, na volta pra casa, descobre que pode voar”. O conceito do filme aparece metaforizado nessa descrição. O encadeamento das sequenciais que levam ao clímax da obra é um trunfo, que gera a expectativa, captura a emoção e faz com que o expectador “prenda a respiração”. Depois do evento transcorrido, nos desloca para um novo lugar. Um mérito inequívoco da direção de Renata Martins, da montagem de Cristina Amaral e do trabalho de composição visual das fotógrafas Mariane Nunes e Thais Nardi.

As asas que nascem em Zu após a vivência de um trauma são a metáfora para o sentimento de resiliência em meio à estrutura que oprime e mata crianças e jovens como ele. Zu escolhe acreditar que “pode voar” e sublimar as condições desfavoráveis, optando por preservar à integridade da infância e dos seus sonhos mesmo em meio a dor da perda e ao medo de ser o próximo na linha de tiro.

Suas asas, contudo, são asas de borboleta: belas, imponentes, mas frágeis e imaginárias. Um simbolismo que é referendado no título do filme.

Apesar de fazer uma espécie de justiça poética a vários casos de meninos e meninas negras vitimadas pela racismo estrutural — e pela necropolítica que o corrobora — o discurso do filme confirma que sim, a esperança e a resiliência são importantes, mas é preciso estar sempre atento para não se tornar mais “um ponto negro na massa de tiro”.

Sem Asas
Direção: Renata Martins
Ano: 2019

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.