Tenho Local

“Eu sou humano e preciso ser amado
Assim como todo mundo precisa.”
Morrissey

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Em 1984, ao lado da banda The Smiths, Morrissey cantou sobre a necessidade de afeto de uma forma direta e juvenil, atrelando o sentimento irremediavelmente à experiência humana. Quase duas décadas depois, How Soon Is Now?, a faixa em questão, foi regravada por um duo russo, que manteve boa parte dos seus elementos sonoros e estruturais. A necessidade, afinal, permanecia a mesma, não demandando grandes ajustes para se fazer entender como algo pungente.

Hoje, How Soon Is Now? tem 36 anos e outros versos vem à cabeça quando se pensa sobre a busca por afeto: “Como você pode dizer/Que faço as coisas do modo errado?”. São tempos de maior liberdade, mais abertos às conversas sobre relacionamentos e, claro, tempos nos quais certo e errado se tornaram noções flexíveis. Passíveis de subjetividades. Talvez um fruto da tal liquidez. De certa forma, isso é percebido com facilidade em Tenho Local (2016), curta-metragem dirigido por Mauro Carvalho e Thiago Cazado.

Celulares, aplicativos, mensagens de áudio e questionamentos sobre confiança são o ponto de partida para a história de dois rapazes gays que, em uma determinada noite, decidem se encontrar no apartamento em que um deles vive com os pais. Tem-se, então, durante o primeiro ato, uma história como tantas outras sobre afeto e modernidade. Sobre o papel da tecnologia nos relacionamentos humanos. Reservando alguns minutos para, com cortes rápidos, apresentar os seus personagens, os diretores dissimulam a verdadeira discussão do curta.

Porém, uma virada na trama traz à tona o tema central de Tenho Local: a liberdade sexual. É também essa virada a responsável por tornar claros os motivos para o incômodo que o texto do curta causa desde os primeiros momentos, quando tudo é apenas uma conversa tacanha em ambientes escuros. Seja pelo reconhecível ou pelo clichê, a sensação de familiaridade e lugar-comum provocada pelo roteiro não abandona quem assiste até que a única cena de sexo de Tenho Local acontece.

A escolha dos ângulos na sequência remete à pornografia. Assim, quando ela se soma ao roteiro, um segmento fetichista dessa indústria, focado em produções violentas, começa a emergir no imaginário de forma inevitável. A “referência”, porém, extrapola situações pontuais e marca todo o discurso e as escolhas estéticas do filme.

Por exemplo, a sensação claustrofóbica evocada pelo segundo ato, construído em um ambiente fechado e de cores dessaturadas, é aliada à exposição de fetiches controversos, como o estupro. Em contraponto, no terceiro ato, quando o afeto assume o primeiro plano, tem-se alguns tons azulados e ambientes abertos, ilustrando a liberdade dos personagens de uma forma quase didática.

Entretanto, a ideia de que o sexo precisa estar constantemente atrelado à ausência de limites é que mais ressoa. Não somente pelo que é revelado nos minutos finais, mas porque tais ideias acabam esbarrando em questões coletivas.

Quando se fala no todo, as subjetividades se tornam um terreno acidentado. Sobrepor as liberdades individuais ao que é movimento luta de um grupo (também minoritário) é leviano, assim como erotizar questões que vitimizam diariamente. Nesse caso, tais escolhas aparentam ser fruto do contato com a pornografia, cujos aspectos nocivos já foram estudados e expostos cientificamente, deixando claro que abordar os malefícios não é somente uma questão moral. Em determinada sequência, um dos personagens tem uma arma apontada para a cabeça e a boca ocupada por um pepino. Com uma expressão assustada, ele escuta que somente deve colocar na boca o “alimento que Deus deu”, discurso homofóbico característico de pessoas religiosas.

Porém, levantar esses pontos é sempre o primeiro passo para que a discussão caminhe para esses rumos e termine no moralismo. Afinal, quem pode dizer que o desejo alheio é errado? Talvez ninguém possa de fato. Mas normalizar alguns discursos presentes em Tenho Local e protegê-los com teorias acadêmicas desprovidas de contextos mais amplos é dar respaldo para que outras liberdades individuais, tão prejudiciais quanto, estejam acima do bem-estar coletivo — o que deveria prevalecer dada a própria noção de sociedade. Ou então não haveria nenhum tipo de filtro impedindo o sexo em um teatro infantil enquanto uma peça é apresentada.

Tenho Local
Direção: Thiago Cazado e Mauro Carvalho
Ano: 2016

Veja o filme “Tenho Local” aqui.

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