Top 5: Gabriela Amaral

A paulistana Gabriela Amaral (que às vezes assina como Gabriela Amaral Almeida) precisou apenas de dois longas — muito diferentes entre si — para se projetar como um dos nomes mais criativos e interessantes de nosso cinema.

Em O Animal Cordial (2017), seu longa de estreia, Amaral cria, a partir de uma situação de violência (um restaurante é invadido por assaltantes armados), um tipo de tensão e atrito que se desloca para posições pouco óbvias: percebemos que o maior perigo, ali, não são exatamente os assaltantes, mas sim as pessoas de bem que camuflam seus instintos e seus desejos. Ousando escolher caminhos e códigos que dificilmente seriam a primeira escolha nas mãos de outro realizador, Amaral cria uma teia que a permite celebrar imagens violentíssimas e icônicas ao mesmo tempo em que faz críticas sociais, resultando em uma aula de construção de atmosfera e horror.

A mesma desenvoltura aparece em A Sombra do Pai (2018), seu segundo longa-metragem. Com o sobrenatural mais marcado, o filme conta a estória de uma garotinha que tem um elo com o mundo dos mortos. Mas o terror aqui não surge exatamente disso, mas sim da sua relação com o pai que, ao n;ao superar o luto da esposa, parece cada vez mais mais debilitado (ou assombrado).

Embora seus filmes sejam muito diferentes entre si, entre tons e cores e temáticas, é visível que há um ponto comum: a exploração dos códigos do horror como dispositivos acionadores de suas narrativas. Manipulando esses códigos, Gabriela consegue, de forma lenta e gradual, atingir seus respectivos clímax com ápices de angústia, terror e violência.

Tematicamente, os trabalhos da diretora também dialogam: eles costumam lançar olhares sobre relacionamentos familiares ao mesmo tempo em que tecem críticas sociais às relações de classe e trabalho, sem nunca esquecer a dimensão mais humana de seus personagens, que parecem buscar, mais do que tudo, afeto e compreensão.

Todas essas características que acenam à um tipo de traço de autoria podem ser vistas em seus trabalhos pregressos. Fazendo cinema de curta-metragem desde 2010, a diretora tem uma filmografia de curtas tão interessante quanto seus dois longas. E é isso que a gente vê em nosso Top 5 de hoje.

5. Uma Primavera (2011)

Chega a ser impressionante como Gabriela extrai terror e tensão a partir de cenas corriqueiras. Uma Primavera é o exemplo perfeito disso: para comemorar o aniversário de treze anos de sua filha, uma mãe a leva para um piquenique no parque. A coisa se complica, porém, quando a garota simplesmente desaparece. O filme passa a ser, então, uma busca desesperada pela menina.

Dividindo a narrativa em duas partes, primeiro acreditamos, de fato, que as duas mulheres são mesmo mãe e filha. Preocupada em criar um clima de afeto (porque sem ele não sentiríamos o peso do segundo ato), Gabriela as filma com naturalidade e intimidade, fechando a sua câmera nos rostos, capturando assim olhares e detalhes. Na segunda parte, para imprimir o desespero da mãe que não encontra a sua filha, os planos mais abertos se intercalam com o terror expresso no rosto da mãe. Essa alternância e os encontros que parecem fugir do realismo e flertar com um surrealismo bizarro (as figuras que aparecem no parque indicam isso) vão tornando a experiência de Uma Primavera cada vez mais incômoda.

A conclusão, bonita e apaziguadora, deixa evidente que tudo o que seguimos foram pistas-falsas. O que estava em jogo, ali, não era exatamente o horror da perda, mas as inseguranças provocadas pelo amadurecimento das duas personagens.

Assista ao filme aqui.

4. Terno (2013)

Dirigido em parceria com Luana Demange, Terno é um filme sobre reconciliações e afeto. Partindo de um cenário de cores frias e de uma câmera que parece ser testemunha da frieza das relações, Gabriela e Luana vão, pouco a pouco, desconstruindo os signos que colocam na tela.

Na história, Marcelo é um homem alinhado que está prestes a se casar. Ele precisa, no entanto, ajustar as medidas do velho terno de seu pai, um homem que não é exatamente próximo a ele. O contraste que se constrói entre pai e filho é pontuado não só pelo figurino (enquanto um aparece perfeitamente alinhado, o outro encontra nas roupas a evidência de que o seu corpo já não é mais o mesmo), mas pela postura dos atores em cena.

Conforme o filme avança, percebemos que há entre os personagens uma vontade tácita de aproximação. O terno do título, então, aponta para duas coisas diferentes: à roupa que o pai usará no casamento do filho e também à relação (surpreendentemente) terna entre os dois.

Assista a uma versão do filme com audiodescrição aqui.

3. Estátua! (2014)

Mais uma vez, Gabriela parte de uma premissa extremamente simples para metaforizar o terror de sensações mundanas. Aqui, Isabel, grávida de seu primeiro filho, consegue um emprego para ser babá de Joana, uma criança que parece ser meio carente.

É interessante perceber como a diretora cria um clima claustrofóbico com muito pouco recurso. O apartamento em que se passa a ação, à primeira vista grande e acolhedor, vira um espaço de tensão. Tensão esta que se acirra minuto a minuto, a ponto de não sabermos exatamente a natureza das intenções da criança — que parece tomar (ou personificar) os medos acerca da maternidade mais profundos da babá.

Com imagens poderosas e com uma ideia aterradora por trás (e se ficássemos congelados, paralisados para sempre?), Estátua! reafirma o apreço da diretora pelo cinema de horror e deixa mais nítida a desenvoltura da diretora.

Assista ao filme aqui.

2. Náufragos (2010)

Náufragos acompanha dois velhinhos que são casados por uma vida inteira. Habituados um ao outro e a uma rotina imutável, a quebra acontece quando o homem é “sugado” para debaixo de sua cama. Sem saber do paradeiro do esposo, a mulher revira o apartamento e suas velhas memórias a fim de encontrá-lo.

O afeto e a graça andam de mãos dadas a uma sensação de terror iminente, como se a qualquer tempo algo muito terrível fosse acontecer. Quando a quebra acontece, no entanto, o que se tem não é exatamente algo terrível. É uma reflexão sobre a velhice, sobre a solidão, sobre amor e sobre o que vem depois disso.

Lindíssimo.

Veja o filme aqui.

  1. A Mão Que Afaga (2012)

A Mão Que Afaga marca o início da promissora parceria da atriz Luciana Paes com a diretora. Aqui, Paes vive uma mãe solteira que trabalha como operadora de telemarketing.

Mostrando, a partir da repetição, as agruras da personagem em seu local de trabalho e o tédio e a solidão que ela sente, Gabriela concretiza, mais uma vez, um pequeno grande conto sobre solidão e medo.

Numa estética que remete a David Lynch (seja nas cores ou no fator estranho), a cineasta pinta um quadro com tintas de uma frustração crescente e controlada. A personagem de Paes parece não ter saída: vive para o trabalho e vive para o filho. Quando a criança faz aniversário, a mãe contrata um urso para animar a festa. O que se sucede, a partir daí, são momentos que se iniciam cômicos e se estendem até que o desconforto e o constrangimento atinjam seus ápices.

Com um final que transborda sensações muito diversas entre si, Gabriela sublinha, amplifica e redimensiona tudo o que vimos até então com uma única imagem. Habilidade rara de quem sabe o que diz e sabe como dizer.

Assista ao filme aqui.

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Thiago Dantas
curta curtas :: curtindo curtas, curtindo cinema

Uma espécie de Macabéa, só que mais trouxa. 31 anos, paulistano, comunicólogo e professor.