Top 5: Jorge Furtado

Top 5: Jorge Furtado

Quando se fala em Jorge Furtado muitos, de cara, já começam a prestar reverências.

Também pudera, na ativa como produtor audiovisual desde o início dos anos 80, o cineasta de Porto Alegre criou nas últimas duas décadas alguns dos filmes mais divertidos e importantes do nosso cinema (pra ficar em alguns exemplos, é dele a autoria do engraçadíssimo Saneamento Básico, O Filme (2007) e do fabuloso O Homem Que Copiava (2003) e emplacou na telinha, como roteirista, alguns programas de sucesso, como as séries Sob Pressão, Doce de Mãe, Mister Brau e Todas as Mulheres do Mundo.

Todavia, seu reconhecimento é muito, muito anterior aos filmes de longa-metragem e aos trabalhos realizados na Globo. Jorge Furtado fez seu nome ainda na década de oitenta, quando, depois de produzir teatro, fundar a Casa de Cinema de Porto Alegre e ser diretor do Museu de Comunicação Social de Porto Alegre, decidiu escrever e roteirizar curtas-metragens.

Ilha das Flores (1989), o mais famoso dentre eles, fez sucesso dentro e fora do Brasil: o curta ganhou o urso de prata de melhor curta-metragem no Festival de Berlim, além de ter feito a rapa no Festival de Gramado e em mais alguns outros. Seguindo por caminhos nada óbvios, o filme trazia, a partir da trajetória de um tomate — desde a colheira até o descarte -, reflexões sobre desigualdade social, má distribuição de renda e a fome. Unindo ciência, bom humor e imagens chocantes costuradas por uma narração inteligente e uma montagem acelerada, Furtado imprimiu no filme algumas características que marcariam o seu cinema.

Mas, desde antes de Ilha das Flores, algumas dessas características já se faziam presentes. E outras, tão legais quanto, foram incorporadas ao longo dos anos. É isso que a gente vê agora no nosso Top 5: Jorge Furtado.

5. O Vampiro de Novo Hamburgo (1991)

O Vampiro de Novo Hamburgo

Feito para TV, essa pequena pérola de Furtado é frequentemente esquecida quando abordam a carreira do diretor. Isso porque ela não tem o alto valor de produção ou a importância temática e estética de filmes como Barbosa (1988) ou mesmo do supramencionado Ilha das Flores (1989). Seja como for, isso não quer dizer que há menos empenho ou esmero.

Como se fosse um programa de TV, apresentado por uma repórter, o filme de pouco mais de quatro minutos conta, em um falso-documentário, a respeito de Faulkner, um alemão radicado no Brasil que tentou, na década de 10, fazer um filme de terror com “toques gaúchescos” chamado O Vampiro de Novo Hamburgo. Com uma narração pra lá de inspirada e com piadas sobre a própria história do cinema (em dado momento, a jornalista diz que “Em 1913, Faulkner já se revelava um pioneiro realizando experiências com o cinema sonoro. Infelizmente, suas tentativas de registrar o som das cenas que filmava não foram bem sucedidas”), o filme reconstituí a história do falso cineasta a partir dos registros do filme que resistiram ao tempo.

É bacana demais como as imagens do que deveriam ser os filmes de Faulkner interagem com a narração do programa e também todo o flerte e referências ao cinema de horror de Roger Corman. O tom paródico remete também ao longa A Dança dos Vampiros (1967), de Polanski.

Como se não bastasse tudo isso, o final do curta ainda reserva uma reviravolta acerca da então jornalista que nos apresentava a matéria. Coisa fina, coisa bela.

Veja aqui.

4. Esta Não É A Sua Vida (1991)

Esta Não É A Sua Vida

Este filme é um documentário que parece testar a todo tempo os limites do que se pode ser um documentário.

Trazendo dentro de si a ideia de eleger um personagem aleatório e a partir deste personagem se construir cinema, Esta Não É A Sua Vida percorre, em treze minutos, a busca por essa personagem por parte dos cineastas, ao mesmo tempo em que acompanha os desdobramentos de sua vida.

Noeli, a mulher em questão, é uma dona de casa de um subúrbio de Porto Alegre que, aparentemente, não tem nada de muito especial. Aparentemente, porque conforme conta a sua história, sem se dar conta do quanto ela é fantástica e peculiar, Noeli e Furtado desnudam juntos os limites da encenação e do que se pode entender por cinema, provocando emoções genuínas e desconfianças ao longo de todo o tempo.

Pela humanidade, sensibilidade e poder discursivo, Esta Não É A Sua Vida fica com a nossa quarta posição.

Assista ao filme aqui.

3. Estrada (1995)

Estrada

Desde seus segundos iniciais, Estrada se propõe a discutir a questão da sorte e do azar.

Não à toa, Pedro Cardoso, dando voz ao protagonista, aparece lendo o horóscopo para sua esposa (uma Débora Bloch no que talvez tenha sido o auge de sua beleza).

Com uma condução amena que deixa de lado o tom mais rápido de seus filmes anteriores, Furtado segue o personagem de Pedro em uma viagem de carro com a esposa e um casal de amigos. Reflexivo e meio melancólico — mas nem por isso duro ou sem humor -, o filme parece prenunciar uma catástrofe. A sensação de que algo ruim vai acontecer fica mais forte devido a montagem, que intercala imagens de um caminhão que parece à beira de um colapso (e dizer qualquer coisa além disso seria estragar a experiência de quem não viu o filme).

Enquanto a tensão se intensifica pela montagem, ouvimos a personagem de Pedro narrar algumas das palavras mais bonitas de Jorge Furtado:

“Você acredita no destino? Eu não. Eu acredito que o ser humano tem o poder e totais condições para estragar a sua própria vida sem a ajuda de ninguém: tomando as decisões erradas nas horas impróprias, aliando-se à canalhas diversos, acreditando em heróis, crentes e outros farsantes, apaixonando-se por pessoas doentes ou de péssimo caráter, e, principalmente, acreditando cegamente em sua própria inteligência, bondade, charme, sanidade e senso de justiça. Um grave erro.

As leis da probabilidade permitem que você possa contar com momentos bastante bons, que podem ser prolongados se você tiver alguém pra dividir ou pra lembrar deles, que podem ser em maior número, se você tiver a capacidade de planejá-los. Acho que é isso: alguns amores recíprocos, algum dinheiro, trabalho, muitos planos. E alguma sorte.”

Imperdível é pouco. Veja.

2. O Sanduíche (2003)

O Sanduíche

Talvez, dentre todas as definições já feitas sobre o que é cinema, a de Rainer Werner Fassbinder seja a mais verdadeira. Ou ao menos uma das mais interessantes. O alemão definiu cinema como “uma mentira de 24 quadros por segundo”.

E é talvez com essa ideia de que cinema é uma enganação que Furtado constrói o belíssimo e incrível O Sanduíche.

A princípio, somos apresentados a um casal, na casa dos trinta, que parece estar se separando depois de anos juntos. A surpresa que ninguém espera é que, depois de um diálogo denso e muito crível, o tal casal não era “real”: a briga se tratava de atores de teatro ensaiando uma cena em que personagens que estavam rompendo. A partir de então, segue-se uma nova cena em que, depois de algum tempo, é desvendada, de novo, como sendo mentira. E assim o filme segue: quebrando a quarta parede e expondo novas quebras do pacto cinematográfico, O Sanduíche quebra expectativas e mói expectativas sobre o que é verdadeiro e o que é real nos relacionamentos, na vida e, especialmente, no fazer cinematográfico.

E é por levar o recurso da farsa e a discussão metalinguística sobre o fazer cinema até as últimas consequências que O Sanduíche ganha nossa medalha de prata neste Top 5.

Veja o filme aqui.

1. O Dia Que Em Dorival Encarou a Guarda (1986)

O Dia Em Que Dorival Encarou A Guarda

Produzido em um cenário em que os ecos da repressão de uma ditadura de mais de vinte anos ainda perdurava, O Dia em Que Dorival Encarou a Guarda, de Furtado em parceria com José Pedro Goulart, carrega em si uma subversividade e ousadia escancaradas.

Na história, o personagem título é um homem negro que está numa prisão militar. Há dias sem tomar banho, ele tenta convencer um soldado que o tire dali. O convencimento, porém, não funciona. E ao perceber que está encarcerado não só fisicamente mas também preso às amarras de uma hierarquia rígida que sequer faz sentido, Dorival assume uma postura combativa e manda o soldado à merda. A cena se repete com um cabo, um sargento e até um tenente. Entre os diálogos, cada vez mais agressivos — e paradoxalmente engraçados e ousados, há cenas que denunciam a hipocrisia daqueles homens e que mostram como certas coisas realmente não têm razão de ser.

Nas entrelinhas, o humor escalaciona na mesma medida em que a violência, e assuntos como racismo, poder, militarismo e hierarquias se desenham diante de nossos olhos.

Com um plano final que parece ser uma metáfora perfeita do que era o país nos primeiros anos pós-ditadura — e tristemente podemos constatar que a metáfora ainda se faz válida no Brasil de hoje -, O Dia em Que Dorival Encarou a Guarda é um golpe duro e instigante.

Sem medo de soar hiperbólico, afirmo que o filme é uma das melhores coisas que nossa cinematografia já produziu.

Assista ao filme aqui.

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Thiago Dantas
curta curtas :: curtindo curtas, curtindo cinema

Uma espécie de Macabéa, só que mais trouxa. 31 anos, paulistano, comunicólogo e professor.