Torre

“Como é difícil acordar calado,
Se na calada da noite eu me dano.
Quero lançar um grito desumano,
Que é uma maneira de ser escutado…”
Chico Buarque e Gilberto Gil

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O ano era 1969. Brasil mergulhado na lama do militarismo, na época conhecida como “anos de chumbo”. Entre os vários opositores do nefasto regime, um notável: Virgílio Gomes da Silva, considerado o primeiro desaparecido político da ditadura militar, após o Ato Institucional 5. Quase 50 anos depois, sua memória ganha cores, a partir do momento em que seus filhos — Virgílio Filho, Vladimir, Gregório e Isabel — contam a sua história, no curta Torre (2017) da cineasta Nádia Mangolini.

Logo no início, é importante destacar o nome da obra — Torre. Mesmo com pouco nexo com a trama, um título ou a sua tradução nunca é escolhido sem um motivo. Independentemente de sua relevância, está ali. De origem latina, a palavra “torre” encaixa perfeitamente aqui.

No seu significado subjetivo, faz referência a uma proteção. E é justamente nesse conceito metafórico que mora o brilhantismo da escolha, já que o protagonista Virgílio era a fortaleza de seus herdeiros. Quando se foi, a vida de suas quatro crianças mudou drasticamente, apesar da presença da mãe, outro pilar da família. Isso é ilustrado com o recurso da animação com cores e vibrações, cujos mecanismos se mostram uma riqueza, visto que todo o afeto do pai com os filhos contrasta com os horrores daquele período histórico, principalmente quando vemos a imagem de um garoto no colo do pai e a representação de uma era regada a sangue e dor, sempre num tom sensível que salta aos olhos.

Embora a ausência paterna seja o elemento comum entre os relatos dos irmãos, estes são marcados pela diferença. Afinal, cada indivíduo tem sua vivência e suas emoções. Dentro desse sentido, talvez resida o maior mérito da narrativa, pois o curta não se mostra limitado a uma única ótica. Enquanto Virgílio Filho, o primogênito, carrega consigo uma força maior para lidar com toda essa situação, para a caçula Isabel a dor foi mais brusca — algo que remete à obra Éramos Seis, de Maria José Dupré, que também reflete o impacto da morte do patriarca de uma família, mas numa outra realidade. Tudo isso dentro de um universo que, por vezes, cria um contraponto com os reais sentimentos das personas.

Não se trata de uma disputa para ver “quem sofre mais”, mas de uma análise sociológica sobre a mente humana e como cada pessoa reage a um momento doloroso, desde a importância da união às outras questões, como a necessidade do desabafo. São construções humanas que recebem outra roupagem, a fim de dar voz a um paralelo entre passado e presente. Ouvimos suas vozes, vemos seus rostos e imaginamos todas as dores causadas, como se o curta segurasse a mão do espectador e o levasse para cada aspecto do filme, sempre na ideia de trazer um particularismo próprio.

Em síntese, Torre é a personificação das cicatrizes provocadas por um momento doloroso na vida, além de ser o exercício de ouvir e imaginar. Mais do que isso, traz uma importante denúncia contra as consequências de um passado não muito distante marcado por um poder autoritário, que ainda tenta rastejar pelas catacumbas do cenário político atual.

Com um teor poético e com resquícios de esperança, cativa quem assiste e choca quando nos deparamos com a realidade obscura da época retratada, algo que ultrapassa a ficção. Não são atores, são personagens reais que dão um novo sentido às suas histórias, graças a uma direção que valoriza sua premissa e age com naturalidade. Ainda que isso não seja um recurso novo, ele aqui se reinventa e ressignifica o fundamento do cinema como ferramenta para preservação das memórias e criticar, sempre que possível.

Torre
Direção: Nádia Mangolini
Ano: 2017

Veja aqui.

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