Vidas Cinzas

Falso documentário de Leonardo Martinelli faz crítica social à base de premissa surrealista e mistura de personagens reais e ficcionais

Cena do filme Vidas Cinzas, de Leonardo Martinelli

Adotando o formato de um falso documentário, Vidas Cinzas (2017), de Leonardo Martinelli, bebe da fonte de Recife Frio (2009), de Kleber Mendonça Filho, e de outras produções desse gênero como Zellig (1980), de Woody Allen. O que há de singular nele em relação aos outros citados: a focalização da cidade do Rio de Janeiro e a presença de personalidades reais das artes e da política entrecortando a obra.

O filme tem como premissa uma lei que proíbe as cores de existirem no município do Rio de Janeiro, deixando a cidade restrita aos tons cinzentos. É narrado por uma voz feminina que fala francês fluente e avalia a situação pra lá de peculiar de uma distância olímpica, bem ao modo eurocêntrico de conceber uma realidade como heterogênea e exótica.

O “documentário” focaliza manifestações artísticas e políticas — algumas claramente reais — e as apropria à ficcionalização de atos das pessoas contra a proibição das cores. As sequências são intercaladas às falas de figuras como Wagner Moura, Lindberg Farias, Glenn Greenwald, Petra Costa, Flávio Bolsonaro, Marcelo Freixo e Marielle Franco. O assassinato da última imprimiu novo simbolismo ao depoimento da parlamentar, gerando forte comoção nas sessões onde o filme foi exibido.

Paralelo aos depoimentos das personalidades supracitadas, há outros que são evidentemente encenados para o filme e complementam sua narrativa: a senhorinha revoltada que apoia as manifestações pela volta ao mundo colorido, o mendigo que ressalta que prefere tudo cinza porque agora todos vivem na mesma paleta de cores que ele sempre vivou, o deputado autor da lei que tornou a realidade cinzenta e sua perspectiva bitolada e protofacista e um tocante depoimento de um florista que segue amando as flores e rosas mesmo descoloridas, em seus tons cinzentos. A metáfora das cores funciona como uma alegoria a uma a cidade multifacetada que, à despeito disso, extermina pessoas e grupos diferentes do status quo vigente e lhes nega e cerceia espaços e oportunidades.

Embora inicie com um tom de ironia estilizada e um boa dose de comicidade, que já começa pelo enredo surrealista da proibição das cores, narrado com a seriedade que pede um falso documentário, ao passo que também se utiliza de recursos narrativos como encenação e manipulação de imagens reais, Vidas Cinzas se alicerça numa narrativa híbrida, que a todo momento busca cativar o espectador e fazê-lo refletir sobre sua realidade, mesmo que de modo alegórico.

A proposta se mantém durante quase toda a duração do filme, mas é subvertida ao final por uma abordagem mais direta que incorpora uma atmosfera dramática que se transforma em uma espécie de manifesto e libelo antifascista. Com isso, se desvencilha, em parte, de sua proposta inicial, mas adquire novos tons. Em seu desfecho, num olhar lúdico, se evoca uma fagulha de esperança no futuro em meio a dominância de forças obscuras da política — forças essas que se mobilizariam e vieram tomar o poder menos de dois anos após o lançamento do curta.

Há pouco humor e a fórmula do falso documentário tem momentos que parece quase se esgotar, mas a direção encontra meios de compensar isso e injeta novo fôlego narrativo e mais dimensão simbólica e política. O discurso do filme referenda que o espaço à diversidade e à divergência deve ser preservado porque, além disso, o que resta é horror e caos.

Vidas Cinzas denuncia e prenuncia a noite escura que estava por vir, mas também demonstra que para que ela termine, é imprescindível que não a tomemos como situação imutável e que nos mobilizemos para que a realidade social seja transformada.

Vidas Cinzas
Direção: Leonardo Martinelli
Ano: 2017

Veja o filme aqui.

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.