Death Stranding

E o valor das interações humanas

Diego Bezzi
Dá XP?
Published in
6 min readSep 2, 2020

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Death Stranding [Kojima Productions/SIE] consegue a proeza de ser muitas coisas. A nova obra polêmica do [genial] Hideo Kojima, uma das personalidades mais influentes da história da indústria dos games, como sempre quebra as normas, inova e é ousado em tempos onde o conservadorismo parece prevalecer sobre todas as camadas da nossa sociedade.

Um jogo que surpreende seja pela beleza pós apocalíptica da América devastada de Kojima, seja pelo perfeccionismo de seu criador e o capricho da mecânica que faz com que o seu peso e equilíbrio sejam totalmente relevantes na jogabilidade e movimentação, ou talvez pela cada vez mais próxima interação entre a indústria Hollywoodiana de cinema e a indústria dos Games, desde a utilização magistral no uso de atores reais até ao roteiro e narrativa impecáveis.

Após o seu lançamento, o jogo dividiu o público pelo fato de uma parte da comunidade zombar da obra, acusando-a de ser monótona demais e ou de ser um Walking Simulator, mas justamente graças ao tema incomum: sua abordagem e mecânicas de jogo nada convencionais, acabou por impressionar a crítica pela excelência técnica e a supracitada qualidade narrativa aliadas ao cuidado na evolução dos personagens durante o desenvolver da história, e levou a obra de Hideo Kojima à indicação de melhor jogo na The Game Awards 2019.

Covid-19 x Death Stranding

Tá, mas o que um mero jogo de videogame tem a ver com uma pandemia mundial jamais antes vista?

Bem, a vida no estranho mundo de Hideo Kojima, quase que profeticamente, se passa em um contexto de isolamento social muito parecido ao que estamos enfrentando desde o início da pandemia, onde os seres humanos vivem em uma espécie de quarentena que forçou a humanidade a viver em abrigos subterrâneos após uma sequência de diversas explosões que desencadearam os eventos aos quais nos deparamos nos Estados Unidos de Kojima. [Prometo que não vou dar muito spoiler]

No universo do jogo, existem criaturas semelhantes à espectros [as BTs] que querem te engolir vivo e consequentemente causar novas explosões de proporções cataclísmicas iguais as que quase dizimaram a raça humana. Com a série de explosões que aconteceram no início da história, surge um novo tipo de chuva chamada “Timefall” que acelera o tempo e faz “envelhecer”, deteriorando em questão de segundos tudo o que toca além de espalhar uma nova classe de matéria chamado Chiralium [algo semelhante à matéria escura]. Se não bastasse tudo isso, existem outros humanos que sofrem de uma espécie de síndrome que os tornam viciados por roubar cargas [Mules] e uma seita apocalíptica com ambições muito questionáveis que aparecem pelo seu caminho, amplificando a sensação de fuga a todo momento e a obrigação de se isolar a qualquer custo. [Pra ajudar, o personagem principal tem afefobia, que é uma condição que causa fobia e desconforto a qualquer tipo de contato físico]

Em nossa realidade o isolamento se deu por causa do surgimento do novo vírus Covid-19 que vem assolando o planeta Terra, causando mortes, fechando fronteiras entre cidades e países e arrasando a economia por todas as nações onde a epidemia se estabeleceu.

Dentro da obra de Kojima, assim como em nosso contexto atual de sociedade, nós enfrentamos os mais diversos dilemas e situações [com uma carga emocional extremamente intensa] onde tudo o que nos resta é recorrer à nossa humanidade e principalmente agir com base naquela famosa palavrinha que a sociedade de hoje em dia parece ter esquecido ou insiste em ignorar: em-pa-ti-a!

Com a peculiaridade de sua mecânica e no desenrolar da sua excelente história, o jogo deixa bem claro de que se não existir senso de coletividade e empatia de uns com os outros, não haverá esperança, portanto a humanidade continuará falhando como espécie, e Hideo Kojima foi totalmente eficaz na forma como jogou isso nas nossas caras com a sutileza de uma obliteração[!]. Não com a mesma sutileza, o vírus com sua devastadora capacidade de destruição, deixa os mesmos sinais apresentados pelo jogo desde a primeira nação a sucumbir pela gravidade do Covid. Deixando escancarada a máxima de que sem empatia e mais humanidade entre as pessoas, nossa experiência na Terra vai se abreviar cada vez mais.

Sam Bridges e os Entregadores de Aplicativo

Como se já não bastasse a relação do cenário de Death Stranding com o nosso contexto atual, o jogo nos apresenta também uma relação muito grande entre o protagonista, Sam Bridges, interpretado pelo ator Norman Reedus e os entregadores de aplicativos.

Assim como os entregadores [que é muito importante ressaltar aqui: realizaram uma grande manifestação em várias capitais do país, reivindicando por condições dignas para a execução do seu trabalho e maior valorização no mercado de trabalho], Sam também faz parte de uma classe de entregadores que são responsáveis por fazer entregas de uma variedade infinita de coisas [desde uma pizza quentinha e apetitosa, até um cadáver para ser cremado e evitar mais obliterações pelo continente] e diariamente precisa enfrentar um cenário caótico junto a um contexto social nunca antes visto, realizando entregas por todos os cantos do mapa e arriscando sua própria vida para manter as pessoas protegidas, consequentemente fazendo com que todos fiquem dentro dos abrigos [ou no nosso caso, nossas casas], recebendo as suas respectivas encomendas sem precisar correr o mesmo risco que ele enfrenta estando “lá fora”.

Existe prova maior de empatia e humanidade do que essa?

Nem todo herói usa capa, e os nossos heróis de hoje em dia por vezes usam uma simples bicicleta, passando horas a fio na rua, sem comer, quase sempre sem nenhum descanso e correndo o risco de contaminação pelo vírus e fatalmente perder a própria vida.

Sam também não acredita que cada uma das entregas que está realizando tem um valor de importância imenso em um cenário onde ninguém pode sair, muito menos acha que é valorizado o suficiente por correr os quatro cantos entregando pacotes e arriscando sua vida por uma recompensa baixíssima. Justamente por esse motivo, Sam luta até o fim por condições de poder levar uma vida justa e digna, muito semelhante à luta dos trabalhadores de aplicativo.

O jogo explora conceitos que nunca deveriam ter saído de dentro de cada um de nós e aborda de forma genial a conexão entre as pessoas e a relação entre elas, nos fazendo refletir sobre nós mesmos e nossas ações dentro do contexto da nossa sociedade, de um jeito similar à forma que o duro período de pandemia que estamos passando atualmente está nos ensinando [bem, nem todo mundo está aprendendo, vide a quantidade imensa de pessoas que podem ficar em quarentena mas preferem ignorar as regras de segurança por puro e simples egoísmo].

Em um momento em que está difícil a convivência consigo mesmo, combatemos o fantasma da solidão, desejamos de qualquer maneira nos conectar ao mundo e as pessoas, o contato físico é artigo de luxo; muitos estão sendo forçados a pensar de modo coletivo [mesmo que infelizmente o histórico de atleta de alguns os impeça de ter a capacidade cognitiva de pensar em qualquer coisa, além do próprio umbigo]. Vivemos uma luta diária e desgastante por um mundo melhor, mas se viver é resistir, então será!

Mesmo que a luta seja por um mundo que nunca mais será como antes.

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