Causalidade e Ciência

Armadilhas causais

Felipe Argolo
D-VAN
10 min readNov 9, 2022

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A noção de causalidade costuma ser apresentada sem uma abordagem adequada das bases filosóficas necessárias. Como esperado de um tema popular, existem controvérsias e mal entendidos.

Existe uma razão para o conceito ser bastante discutido e instrumentalizado nas ciências de saúde. Em geral, estamos interessados em intervir para mudar um desfecho negativo ou neutralizar fatores de influencia negativa. Diante de um paciente com síndrome coronariana aguda, é vantajoso saber que a perfusão inadequada do miocárdio está causando os sintomas. Revertendo a “causa”, mudamos também o destino daquele indivíduo. Aqui, “causa” está entre aspas, pois diversas armadilhas cercam o constructo de causalidade.

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Ainda que seja instrumentalmente útil, basta um breve descuido para chegar a conclusões equivocadas. Em especial, recomendo que o uso dessa abstração seja restrito a um certo paradigma experimental. Como mostra o caso específico que motivou esse texto, elaborações mais gerais podem ser fonte de erros.

Por exemplo, é válido dizer que, num estudo empírico, reverter uma determinada condição causou uma redução no número de desfechos. Porém, na maioria das vezes, é errado dizer genericamente que a condição é causa do desfecho. Vamos entender melhor este aparente paradoxo a seguir.

Diferentes noções de causalidade

O primeiro ponto que devemos entender: existem múltiplas definições para causalidade. Algumas abstrações são puras ao ponto de evitar essa confusão. O mais proverbial exemplo está em entidades tratadas pela matemática, como números reais, funções e conjuntos. Em contraposição, causalidade é uma ideia relativamente heterogênea na filosofia.

Uma das primeiras concepções surge com Aristóteles, que define causalidade em quatro tipos de explicação: matéria, forma, eficiente (agente) e final (propósito). Este texto não se propõe a explicar o desenvolvimento histórico do termo. As referências ao final deste artigo indicam as entradas sobre causalidade na física e na metafísica da enciclopédia Stanford de filosofia.

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Para esclarecer a confusão, considero necessário falar de três perspectivas: (1) Causalidade apoiada sobre o contra factual, uma concepção muito usada nas ciências de saúde; (2) Os diferentes níveis de causalidade propostos por Tinbergen na etologia (estudo do comportamento animal); (3) As críticas de Ernst Mach e Bertrand Russell à causalidade como construto, revitalizadas por contemporâneos (Neo-Machianos e Neo-Russellianos).

Causalidade e contrafactuais

Quando usamos a noção de contra-factuais para falar em causalidade, consideramos o cenário em questão caso o fator relevante fosse removido. A grosso modo, dizemos que um fator A é causa de B se a neutralização/remoção de A anula B. Por exemplo, podemos dizer que o sabor doce no café é causado quando acrescentamos açúcar. No contra-factual, quando removemos a etapa de colocar mel, nosso café se apresenta como amargo.

Esta definição instrumental é muito importante para as ciências sociais e de saúde e é comumente operacionalizada usando a estrutura teórica antes citada com grafos direcionados e variáveis aleatórias (ver Judea Pearl, 2009). O trabalho recente de Pearl formaliza causalidade para algumas aplicações empíricas. Em específico, essa abordagem usa grafos direcionados (directed acyclic graphs, DAGs) para modelar a relação entre variáveis aleatórias. É um ferramental poderoso para explicar correlações entre medidas empíricas, permitindo o cálculo de efeitos atribuídos a intervenções e fatores de risco em saúde.

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Ainda que apresente uma admirável plataforma para pesquisa científica, é necessário muito cuidado ao utilizá-la.

Especificamente, é fácil esquecer que a escolha de elementos para esta descrição de realidade é arbitrária. Isto é, ainda que um fator funcione como agente causal num certo modelo concebido, é importante saber que o modelo em si contém elementos que não correspondem ao fenômeno real. Em outras palavras, existe uma variedade infinita de possíveis modelos.

O mais adequado é pensar em explicações específicas a um contexto. Isto é, falar em causalidade exige que o modelo de realidade usado seja especificado de antemão.

“Corra, Lola, corra!” — Efeito borboleta, causalidade em diferentes níveis e Tinbergen

No clássico cult do cinema alemão “Run Lola Run” (German: Lola rennt, lit. “Lola Runs”, 1998), acompanhamos a protagonista em diversas realidades alternativas. Repetidas vezes, a história volta ao início e algo ligeiramente diferente acontece. Por exemplo, numa primeira narrativa, Lola passa por um homem e seu cachorro. Numa realidade alternativa, Lola esbarra neles. O objetivo do filme é mostrar como pequenas alterações na linha do tempo podem ter efeitos enormes a longo prazo.

A matemática trata sistemas assim como “caóticos”, isto é, sistemas nos quais pequenas perturbações nas condições iniciais geram diferenças grandes no estado final. Formalmente, isso é medido através dos expoentes de Lyapunov, mas não queremos ir tão fundo por enquanto. Aqui, basta guardar a dúvida:”poderia o bater de asas de uma borboleta na América do Sul causar um furacão no Japão”?

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Assim sendo, na maioria dos fenômenos reais, é impossível estabelecer uma relação unívoca entre a complexa realidade e elementos que elaboramos para compor nossa descrição. É possível considerar infinitos fatores cujos contracfatuais anulariam (ou garantiriam) uma observação empírica. Retornando ao caso do café doce, podemos pensar, Aristotelicamente, que o sabor doce tem como causa material a presença de mel. Por outro lado, também podemos pensar em outras “causas” a depender da perspectiva adotada e da ontologia dos elementos que queremos usar. Pensando em dinâmicas sociais, podemos pensar que a “causa” para um café doce na mesa do desjejum é a visita de um parente distante que gosta de tomá-lo assim, enquanto os residentes da casa preferem café amargo. Note que as duas causas não são incompatíveis: não colocar mel (causa material) seria o suficiente (contrafactual) para não termos café doce. Da mesma forma, a ausência do parente distante teria o mesmo efeito. Como colocado anteriormente, a cadeia hipotética de elementos influenciando o desfecho é limitada apenas por nossa imaginação. Um economista pode ainda associar a doçura do café ao preço acessível do mel naquela região. Isto é, preços inacessíveis também configurariam um contrafactual culminando em café amargo.

Esse pluralismo é a causa (risos) para a concepção aristotélica em diferentes níveis de explicação. Quando pensamos em fisiologia animal, cabe citar Tinbergen, um etólogo que propôs hierarquia semelhante. Ao refletir sobre determinado atributo, Tinbergen coloca 4 níveis de entendimento:
(1) função adaptativa; (2) história filogenética; (3) mecanismos fisiológicos subjacentes e (4) história do desenvolvimento (ontogenese).

Pensando sobre as manchas de uma onça pintada, quais as causas para que existam? Podemos dizer que elas existem pois favorecem sobrevivência através de camuflagem (função adaptativa). Também podemos dizer que as onças pintadas são um ramo filogenético de outro felino com manchas parecidas, sendo estas, portanto, uma herança com modificações aleatórias. Sem contradições, podemos dizer que as manchas escuras refletem a luz de maneira diferente porque os pêlos possuem mais pigmentos escuros. Por fim, podemos considerar ainda que as manchas são causadas pela expressão diferencial de genes relacionados à melanina conforme uma cascata molecular específica mediada por hormônios.

Espero que aos poucos fique claro ao leitor: estabelecer fatores causais em um fenômeno diz mais sobre o seu modelo de realidade do que sobre o fenômeno em si. É o que Norton (um “Neo-Russelliano”) chama de causas dominantes.

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Skinner gostaria muito dessa discussão. Segundo ele, o uso de construtos mentais (e.g.emoções, pensamentos) não tem lugar na ciência do comportamento. Os behavioristas radicais defendem a construção de um modelo de realidade eliminando tais conceitos do jargão completamente (eliminativismo). Isso não significa que neguem a existência de emoções e pensamentos como fenômenos, mas sim que estes não fazem parte de um modelo de realidade ideal. Note que, ao dizer, “pensamentos não causam comportamento”, Skinner não implica que estados mentais estão desatrelados de comportamentos observáveis. Novamente, a escolha de uma ontologia para os fatores causais diz mais sobre o modelo de teórico proposto por Skinner (e.g. ontologia das causas dominantes válidas). Emoções e pensamentos seriam conceitos inadequados, ou pseudo-fenômenos. Essa perigosa conflação de conceitos levou a um mal-entendido entre cognivistas (em especial, Noam Chomsky) e behavioristas que durou (ou dura?) décadas.

Em específico, certas asserções genéricas e contundentes feitas dentro de um paradigma costumam chocar aqueles alheios ao programa. Isso aconteceu no célebre embate entre Chomsky e Skinner.

Skinner e seus pombos

Para um cognivista, é estranho ouvir que a fome não causa o comportamento de buscar alimento.

Fragilidades da causalidade, Isaac Newton, Ernst Mach e Bertrand Russell

Em verdade, essa confusão é bastante presente em discussões acadêmicas. Por exemplo, é comum acompanharmos manchetes e calorosas declarações sobre descobertas contundentes relacionadas à doenças.

“Descoberta a causa do Alzheimer”. “Pesquisadores demonstram que depressão tem causa genética”. “A causa da obesidade é genética e não está em hábitos alimentares”. “A causa dos transtornos mentais está no cérebro”...

A lista é imensa. Nesse sentido, vale um resgate histórico para entender o contexto. De fato, as tradições herméticas que precederam à ciência como conhecemos já têm algo de reducionista. O lema alquímico “solve et coagula” (Dissolver e coagular) remete à ideia de separar entidades em partes menores para entender seu funcionamento. A evolução do reducionismo como forma de abordagem padrão na ciência ficou ainda mais destacada com a cristalização da “causalidade” como abstração importante. Ao passo em que oferece um conjunto de processos padronizados para considerar ideias, a ideia de causa sistematiza estudos e, consequentemente, também pode cegar pesquisadores para uma visão mais abrangente. Então, passa a ser comum subverter os objetivos principais. Restringimos o espaço de modelos da realidade com base numa gramática simplória pautada em causalidade.

O matemático e filósofo Bertrand Russell escreveu, em 1912, o artigo “On the Notion of Cause”, listando limitações da ideia de causalidade para descrever fenômenos físicos. Outro importante polímata, Ernst Mach, foi influente para reconsiderarmos noções clássicas de causalidade. Muitos creditam a ele os fundamentos conceituais que permitiram as descrições pouco ortodoxas advindas da Teoria da Relatividade.
Os verbetes da enciclopédia Stanford linkados nas referências são uma boa fonte sumarizando os desafios envolvidos em adotar causalidade para a realidade física, conforme postos por filósofos contemporâneos (e.g. Neo-Russellianos, ou Neo-Machianos). Além dos problemas com causas dominantes e definições vagas, alguns obstáculos para a causalidade incluem as premissas de determinismo, localidade e assimetrias temporais.

Uma anedota interessante é relacionada à Isaac Newton em seu Principia (Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica). Muitos contemporâneos questionaram Newton quanto às razões por trás das propriedades do movimento descritas. Na segunda edição da obra (1713), um ensaio (General Scholium) foi adicionado, contendo o seguinte trecho:
I have not as yet been able to discover the reason for these properties of gravity from phenomena, and I do not feign hypotheses. (“Ainda não consegui descobrir a razão dessas propriedades da gravidade a partir dos fenômenos, e não invento hipóteses”)

I do not feign hypotheses é mais conhecida na forma em latim, Hypotheses non fingo. Cronologicamente, Newton antecede em séculos as discussões mais profundas de Russell sobre causalidade, porém notamos aversão a um reducionismo sobre fatores causais específicos. Ele priorizava outras características.

É interessante contrastar suas motivações com a de muitos pesquisadores contemporâneos que trabalham à sombra do paradigma causal em ciência sociais e biológicas. Estes tem como objeto de estudo entidades muito complicadas, incluindo o funcionamento de fenômenos sociais (e.g. dinâmicas econômicas) e biológicos de alta complexidade (e.g. corpo humano). Por um lado, essa é uma premissa razoável para aceitar algum pessimismo quanto à possibilidade de modelos e entendimentos mais globais. Assim, parece adequado aceitar o reducionismo em contextos limitados.

Sob a luz dos argumentos anteriores, sabemos que existem infinitas possibilidades de concepção reducionista (causas dominantes). O leitor deve perceber que a tarefa de descobrir causas verdadeiras é fútil.

Seria a existência do mel a culpada pelo café doce nas mesas? Talvez a solução seja extinguir essa substância da face da terra. Ou talvez a causa seja o preço acessível demais, então a solução é aumentar impostos sobre o mel. Ou ainda, parentes distantes confraternizando podem estar causando o café adocicado. Nesse caso, melhor recomendar isolamento social.

E sobre a dor crônica de coluna, qual a causa? Seriam as adaptações evolutivas do Homo sapiens para andar em postura ereta? Seria uma postura inadequada sustentada durante muito tempo no trabalho? Talvez um esforço excepcional realizado durante uma mudança? Mas, daí, a causa seria o esforço ou a falta de fortalecimento muscular prévio?

Uma ressalva frequente é a de que fenômenos são “multicausais” ou de “causa multifatorial”. Entretanto, isso frequentemente expressa a crença subjacente de que seria possível enumerar exaustivamente as possíveis causas para o fenômeno. Como vimos, em verdade, elas são potencialmente infinitas, limitadas pela nossa imaginação e pelo modelo de realidade escolhido.

Considerações finais

Ficou claro que sou simpático a Russell e Mach quanto ao uso da noção de causa em ciências. Inferência causal é uma boa abordagem reducionista na operacionalização de certos modelos experimentais. É bastante útil para estudos clínicos. Por outro lado, não é uma plataforma inspiradora para entender fenômenos em suas características mais fundamentais. Por sua natureza pragmática, muitas vezes, a gramática causal constitui uma barreira entre o pesquisador e a essência mais sutil da realidade.

Referências

Pearl, J. (2009). Causality. Cambridge university press.

Frisch, Mathias, “Causation in Physics”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2022 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/spr2022/entries/causation-physics/>.
Em especial, a sessão **’2. (Neo)-Russellian Challenges apresenta argumentos contra o uso da causalidade’**. A sessão **3. Interventionist accounts of causation** aborda a concepção de Judea Pearl.

Gallow, J. Dmitri, “The Metaphysics of Causation”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2022 Edition), Edward N. Zalta & Uri Nodelman (eds.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/fall2022/entries/causation-metaphysics/>.

Argôlo, Felipe Coelho. “Invariantes temporais do comportamento na dicotomia Kraepliniana: análise de discurso livre, estados afetivos, experiências psicóticas e possibilidades terapêuticas.” (2021).

Sonnert, Gerhard (2005). Einstein and Culture (illustrated ed.). Humanity Books. ISBN 978–1–59102–316–6.

Popper, K. R. (2004). A lógica da pesquisa científica. Editora Cultrix.

Dawid, A. P. (2010, February). Beware of the DAG!. In Causality: objectives and assessment (pp. 59–86). PMLR.

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Felipe Argolo
D-VAN

M.D., Ph.D. Escrevo sobre o cérebro, comportamento, matemática e tecnologia.