Correr descalço é bom? Um olhar médico.

Felipe Argolo
D-VAN
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4 min readSep 12, 2018

Em Nascidos para Correr, Christopher McDougall mostra a incrível cultura dos Tarahumara, índios mexicanos com uma cultura de corridas de longas distâncias. Os indivíduos da tribo conseguem cobrir distâncias super humanas em apenas uma corrida: até 320 km.

O autor argumenta que isso só é possível graças ao modo de pisada utilizado, garantido por um solado fino, sem amortecedores. O racional é de que se usa menos o calcanhar para absorver impactos iniciais.

Pisando com a parte anterior dos pés, toda a musculatura dos membros inferiores contribui para que o impacto seja absorvido gradativamente. Para explicar melhor o assunto, convidei um especialista.

Fases da Marcha

por Caio Fontes (MR — Ortopedia INTO)

Dr. Caio Fontes é médico residente em Ortopedia pelo INTO (Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia).

A marcha do ser humano é uma interação complexa de vários músculos e articulações de todo o membro inferior, afim de promover a propulsão do corpo.

Músculos da coxa, perna e pé estão constantemente atuando, juntamente com o sistema neurológico, para que essa atividade saia da maneira mais harmônica possível.

Uma passada constitui um intervalo entre a batida do calcanhar à batida do calcanhar subsequente do mesmo pé. Neste ínterim, há mais 6 fases, incluindo as fases de balanço (38%) na qual o pé encontra-se no ar, e as fases de apoio e balanço (62%).

No caso dos índios Tarahumara, as fases iniciais são suprimidas, culminando em impacto inicial na parte anterior e média dos pés, com a ativação concêntrica dos músculos da panturrilha (tibial posterior e gastrocnêmio) produzindo uma flexão plantar do tornozelo, flexão dorsal passiva dos dedos (pelo próprio terreno) encurtando a fáscia plantar do pé (local comum de dor em corredores) e enrijecendo as articulações do pé, tornando-o uma alavanca rígida para reiniciar a marcha.

Claro que devemos levar em consideração outros aspectos durante a corrida, tais como o impacto nas articulações dos joelhos (principalmente meniscos) e nos quadris, além da ativação de musculaturas como coxa e músculos que promovem uma melhor sustentação e equilíbrio (abdome e estabilizadores da coluna).

Benefícios

Resultados iniciais mostram que a biofísica muda drasticamente.

No vídeo a seguir, os 2 minutos finais mostram vetores de força na pisada e curva temporal.

É nítido que a curva apresenta-se como a soma de dois impactos (distribuições) na pisada com calcanhar (amortecedor). A pisada com a bola do pé (descalça) resulta em apenas uma curva convexa, sem interrupções.

“Barefoot running: How humans ran comfortably and safely before the invention of shoes.” ScienceDaily. ScienceDaily, 1 February 2010. <www.sciencedaily.com/releases/2010/01/100127134241.htm>.

O choque na pisada com calcanhar possui dois picos. O primeiro deles é atingido com uma variação abrupta, não existente na segunda curva. A biofísica sugere que a pisada com bola dos pés possibilita uma absorção mais controlada e distribuída dos impactos.

Em consequência, a musculatura intrínseca dos pés é fortalecida. Evidências anedóticas e ensaios iniciais sugerem também um efeito positivo sobre o arco do pé. Uma pisada errada pode ser fonte de dores de coluna, especialmente em indivíduos arcos pouco curvos (pé chato).

Riscos

A transição para outro tipo de pisada estressa o corpo de uma maneira nova. Um processo adaptativo é normal, que envolve microlesões e mudanças fisiológicas.

Durante esse processo, é necessário tomar cuidado com a severidade dessas lesões. Em caso de dor importante, um médico deve ser consultado.

Estudos de longo prazo ainda dever ser publicados. Porém a evidência anedótica do povo Tarahumara sugere que lesões secundárias de longo prazo não são comuns.

Corredores pesados merecem atenção especial, assim como atletas acostumados a treinar por longas distâncias. A transição deve ser sempre lenta. Resultados do ensaio clínico randomizado mais longo publicado até o momento sugere que não há diferenças entre taxas de lesões num programa de adaptação de 26 semanas (~ 6 meses).

Transição

Como começar a correr descalço ou transitar de uma pisada posterior (com o calcanhar)?

Isso deve ser feito de forma gradativa para aqueles habituados a correr. Diversos grupamentos musculares, ligamentos e tendões serão recrutados de forma mais intensa. O atleta deve iniciar com distâncias curtas e observar a adaptação. O acompanhamento de um profissional pode ajudar na detecção precoce de lesões importantes.

Calçados

Para a prática, temos algumas opções:

Descalço — É possível correr descalço em parques, esteiras e outros ambientes. Há sempre o risco de lesões superficiais e até mesmo cortes mais sérios.
Sandália — Uma alternativa é usar sandálias, porém é necessário cuidado na escolha do modelo para garantir estabilidade e contato total do solado com os pés. Bônus: Qualquer criança dos anos 90 sabe que calçar sandálias nas mãos aumenta a velocidade do atleta instantaneamente.
Tênis sem amortecedores — A indústria não oferece ainda para o Brasil. As alternativas são importar ou improvisar, buscando calçados flexíveis destinados à corrida. A durabilidade costuma ser ruim por este motivo. A empresa Vibram oferece calçados desenhados para interferir pouco na pisada. O design é estranho, mas parece ser uma solução desenhada para isso.

Impressões pessoais

Nos últimos meses, tenho incorporado atividades sem amortecedores de calcanhar em corridas curtas (<5 km. ). Noto um stress maior sobre os gêmeos (panturilha), assim com uma subjetiva sensação de melhora na estabilidade da pisada.

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Felipe Argolo
D-VAN
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M.D., Ph.D. Escrevo sobre o cérebro, comportamento, matemática e tecnologia.