Para que Serve a Universidade?

Daniel Torres
DA POLÍTICA
Published in
5 min readJan 13, 2016
Aula magna da Marilena Chaui na USP em 2014

Em linhas gerais, concordo com a Marilena: é medíocre uma universidade que se preocupe apenas com seu orçamento e com quantidade de artigos produzidos pelo seu corpo de pesquisadores. Ela e eu criticamos esse modelo universitário, contudo também crítico algumas de suas críticas ao modelo.

Meu primeiro problema é que seu argumento só é plausível para quem já presume seu paradigma. Quero dizer, é preciso um mínimo de aceitação da tradição intelectual marxista. Partindo de seus postulados, é possível concordar com o conjunto dos argumentos. Por exemplo, o argumento de que a administração, por si mesma, se situa num lugar de fala supostamente neutro, que mascara sua filiação ao interesse das classes dominantes.

Agora, se há discordância dessas premissas, o argumento soa inverossímil. Por exemplo, por que necessariamente a administração seria voltada aos interesses dos donos do poder? Embora descreva isso, a professora não o explica. Ou seja, entre a professora e os ouvintes isso é, simplesmente, presumido. Se se as desconhece, ele se torna ininteligível. Sem contar que a aula magna foi proferida a grevistas e manifestantes contrários à gestão da USP, isso me faz pensar que Marilena Chauí, apesar do embasamento, pregou para convertidos.

Minha segunda crítica, mais abrangente, é aos seus comentários desenvolvimento do modelo universitário no Brasil. Especificamente, o comentário que faz sobre universidade funcional. Seria uma espécie de prêmio às classes médias pelo apoio ideológico à ditadura militar. Os militares as teriam premiado com um modelo universitário que permitisse aos seus filhos diplomações necessárias à ascensão ou conservação do status social. Por isso, adotou-se o sistema de crédito e a organização do currículo em obrigatórias, optativas ou eletivas.

Criticar um modelo utilitário de universidade é atividade que já faz mais de um século, basta lembrar Ortega y Gasset ou Otto Maria Carpeaux (A Idéia de Universidade e as Idéias das Classes Médias in As Cinzas do Purgatório). Como lembra o último, a dissolução da ordem medieval levou consigo o ideal medieval sobre a universidade: uma agremiação daqueles que dedicam a vida exclusivamente a alcançar e propagar a verdade. Há algum tempo já, nenhuma faculdade busca preparar seus estudantes para o trivium e o quadrivium.

Por sua vez, desde o Iluminismo prevalece a idéia de que a ciência necessariamente levará ao progresso individual e coletivo. O conhecimento não seria um fim, seria um meio de alcançar o bem-estar pessoal ou coletivo. Em suma, o conhecimento seria funcional. Basta lembrar que a França moderna, a filha mais velha do Iluminismo, é, por exemplo, a mãe das escolas politécnicas, modernizadoras da indústria, e do organicismo sociológico, ciência voltada para a rearmonização social. A funcionalidade da universidade, hoje centro de produção de conhecimento científico, é corolário da funcionalidade das ciências.

Voltando da digressão: a funcionalidade da universidade brasileira não seria uma invenção do governo militar — nem uma peculiaridade nacional, como a professora deixa sugerido. Ela é o desenvolvimento natural da concepção moderna de conhecimento. Por isso mesmo, considerá-la um prêmio às classes médias, a partir de 1968, me soa descabido.

Segundo, se estamos falando de universidade socialmente funcional, tratamos então de sua adequação a certos fins. A professora Marilena Chauí criticou o uso da universidade pelos filhos das classes médias com o simples propósito de obter diplomação para perseguir carreira. Em geral, isso é verdade para os filhos das classes médias — e mais ainda para aqueles das classes baixas. Os estudos universitários demandam, por vezes, sacrifícios financeiros significativos não só do universitário mas de sua família. Grosso modo, os estudos acadêmicos são muito demorados para tanto esforço financeiro.

De qualquer forma, essa instrumentalidade universidade não seria uma peculiaridade das classes médias. Na verdade, esse bacharelismo seria uma tradição nacional. Como explica Sérgio Buarque de Holanda, no Império, qualquer pessoa de ascensão social buscava legitimar-se por meio de títulos universitários. Isso seria mais um problema da nossa cultura universitária que da praxe das classes médias. Os ricos sempre o fizeram, o homem médio o busca, o pobre o quer.

A professora acusa o instrumentalismo de muitos que ingressam nas universidades. Ora, só as universidades oferecem qualificação para exercer diversas profissões. É uma obviedade que ela é um meio para diversos fins profissionais. Na verdade, mesmo quem busca o conhecimento puro avalia a universidade funcionalmente. Afinal, ela é a única instituição que concede meios e espaço para essa vocação.

Sinceramente, não vejo porque buscar qualificação profissional ou vida acadêmica seriam, cada uma, ilegítimas. A abrangência do cabedal de diversas profissões demanda que sejam cursadas na universidade. Isso é desenvolvimento natural do progresso científico e sua disseminação pela sociedade. Por sua vez, a universidade, qual as ciências, não vive apenas para os interesses da economia. Seu propósito original é a busca de novos conhecimentos e a apreciação crítica dos conhecimentos já adquiridos.

Sob esse último ângulo, concordo que o conhecimento puro é desvalorizado pelos poderes públicos em detrimento das ciências práticas. Esse menosprezo estatal, creio, vem de uma concepção arraigada de que a universidade é tão só um ambiente que favoreça o desenvolvimento e a competitividade brasileiros.

Agregamos ao bacharelismo de outrora, o utilitarismo da modernidade. Sobre ambos, paira uma visão incompleta da universidade por diferentes governos. Não creio que seja um problema ideológico, uma suposta racionalidade neoliberal da administração pública na Nova República. É um problema cultural: ainda não nos respondemos, por completo, o que seria o ideal da universidade brasileira.

– Daniel Torres Teixeira

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