Foto: Divulgação/Thathiana Gurgel/Arquivo DPRJ

Segregação social e prisões indevidas no Estado do Rio

De um lado os que se beneficiam das leis judiciais, do outro uma população sem acessibilidade aos direitos básicos.

Fernanda Fernandes
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7 min readJun 17, 2020

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No Estado do Rio de Janeiro, observam-se falhas significativas no sistema carcerário. A crise é intensificada quando a desigualdade socioeconômica interfere de forma efetiva nas decisões judiciais ligadas ao Poder Judiciário em meio ao cotidiano do cidadão.

As condições calamitosas em que vive a população carcerária tem um agravante: o estado de segregação social. Fator histórico que corrobora para a crescente desigualdade no Estado e no sistema carcerário.

Além disso, a administração carcerária é realizada tanto pelo Poder Judiciário, quanto pelo Ministério Público, executando ações como o estabelecimento da pena e a fiscalização dos estabelecimentos prisionais. Ou seja, com as prisões provisórias o contraste social aumenta.

Em 10% dos casos o crime cometido foi tão leve que são feitos acordos com a Justiça, seja de tratamento de dependência toxicológica ou de suspensão do processo sob condições como permanência à disposição da Justiça e que não volte a cometer crimes.

Para a sociedade o uso abusivo da prisão provisória também traz danos. São R$19 milhões gastos apenas com as prisões indevidas. Esse montante vem de impostos e poderiam ser aplicados em políticas que trariam maiores retornos à sociedade.

O que são as Prisões Provisórias?

Entrevistamos a advogada criminalista, Luiza Chagas, que classificou a prisão provisória como:

“uma medida cautelar que restringe a liberdade do acusado antes da sentença penal condenatória, desde que estejam presentes no caso em concreto alguns requisitos expostos no Código de Processo Penal”, comentou.

A seguir, o infográfico mostra o aumento das prisões indevidas no Rio de Janeiro em 2013. Os dados são do Projeto Danos Permanentes, em parceria com o Instituto Sou da Paz, e a Associação pela Plataforma Prisional do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESeC).

As informações são referentes aos processos criminais iniciados com suposto flagrante e distribuídos na cidade do Rio de Janeiro no período entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de 2013.

Os dados foram coletados de forma retroativa por meio de uma análise dos processos disponibilizados no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Das prisões registradas na capital carioca, 31.279 são prisões provisórias e 4.211 são de cidadãos que foram encarcerados de maneira indevida. Ou seja, pelo menos 54.4% ficaram presos de forma inadequada, pois receberam ao fim de cada processo penas menos significativas que a própria prisão, ou foram até mesmo absolvidos das ilegalidades. Sendo um ato desproporcional e indevido do sistema carcerário.

Luiza afirma que a problemática é vista em todo o país.

“Segundo dados fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional — DEPEN, 29,75% da população carcerária no Brasil está presa provisoriamente, ou seja, 222.558 pessoas estão presas sem ter contra elas sequer uma condenação, gerando desta forma a superlotação das penitenciárias”, afirmou.

A discrepância socioeconômica no Rio é um fator relevante para as prisões provisórias?

Para Julia Feldens, também bacharel em Direito, no Estado do Rio esta é uma questão histórica.

“Se parar para pensar desde o início do sistema carcerário o número maior de presos sempre foram de jovens pobres e pretos”, disse.

Para fins de comprovação, buscamos alguns dados da equipe da área de Segurança e Cidadania da Diretoria de Análise de Segurança Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV DAPP), também desenvolvidos no ano de 2013 a 2015.

Eles são baseados nas instituições do Rio como: tais como o Disque Denúncia, o Instituto de Segurança Pública e a Secretaria de Estado e Administração Penitenciária.

A seguir, o mapa desenvolvido pela FGV DAPP, mostra a concentração de apenados por bairros na cidade do Rio de Janeiro.

Residência declarada dos apenados, por taxa de 10 mil habitantes — 2013 a junho de 2015 (Foto: SEAP, Elaborado pela FGV DAPP)

Dentre os 10 mil habitantes penitenciários a maioria se concentrava nos bairros de Bangu, de Barra de Guaratiba, de Cosmos, de Bonsucesso, de Parada de Lucas e de Ricardo de Albuquerque.

Luiza, que também é especialista em Direito Penal e criminologia afirma que,

“é notório o abandono por parte do Estado das comunidades situadas na periferia das cidades. Ausência de saneamento básico, pavimentação, transporte eficiente e a inexistência de policiamento são fatores que deixam os moradores das comunidades jogados à própria sorte. Tornam-se assim, adultos desqualificados para o mercado do trabalho, enfrentando uma concorrência desleal.”

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A Fundação então buscou ainda identificar Índice de Desenvolvimento Social dos bairros da capital fluminense, a fim de avaliar a qualidade de vida nos bairros e verificar se essa reflete o bem estar da população que o habita. Levando em consideração:

o número de domicílios com serviços de abastecimento de água adequados;

o número de domicílios com serviço de esgoto adequado;

o número de domicílios com coleta de lixo adequada;

o número de banheiros por pessoa em cada residência;

a escolaridade dos chefes de domicílios;

o número de analfabetos (maiores de 15 anos);

o rendimento médio dos chefes de domicílios;

a porcentagem de chefes de domicílios que possuem rendimento médio a partir de dez salários mínimos;

Em bairros localizados na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, alguns bairros da Zona Norte (Tijuca, Maracanã e Ilha do Governador), e alguns da Zona Oeste (Campo dos Afonsos, Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes), são registrados um alto Indicador de Desenvolvimento Social.

Portanto, no âmbito da sociologia criminal, há uma constatação da existência de relações entre desigualdade, pobreza e violência no interior das cidades.

“Diante disso nota-se que a classe social do indivíduo tem influência direta no sistema carcerário, são números e não suposições”, afirmou Luiza.

O Estado ganha com a desigualdade e as prisões indevidas

De acordo com o Projeto Danos Permanentes, as prisões registradas em 2013 contabilizam cerca de R$ 45 milhões ao contribuinte. Com essa montante, seria possível manter por um ano 9,9 mil alunos no Ensino Básico, construir 76 Postos de Saúde, ou até mesmo construir 873 Casas Populares.

Para a FGV DAPP, “grande parte dos bairros com maior número de apenados possui baixo investimento governamental em serviços básicos voltados para áreas prioritárias, tais como saúde, educação e saneamento”.

Vítimas da segregação

João é um jovem de 20 anos que foi detido por populares em Copacabana, após ter sido acusado de roubar uma carteira. Apesar de não terem localizado a suposta vítima nem o produto do roubo o acusado foi detido. João não sabia que não poderia ser acusado sem provas e muito menos preso.

Rafael é catador de lixo reciclável no Rio de Janeiro e foi acusado pelos Policiais de carregar consigo um “material explosivo”, durante uma manifestação. Quando na realidade, carregava apenas duas garrafas plásticas do desinfetante de limpeza Pinho Sol.

Sendo acusados de crimes que supostamente cometeram, João e Rafael que sofre todos os dias preconceito na ruas do Rio de Janeiro, acabaram de sofrer mais uma vez, talvez o maior de todos em suas vidas. A falta de apuração e a facilidade em julgar o que lhe parece estranho, influenciou a prisão dos Jovens.

João permaneceu 287 dias isolado em uma cela, até ser levado a julgamento. Quando finalmente reconheceu-se que não havia provas do suposto roubo e ele ser livre novamente.

Já Rafael, foi condenado em 2013 a 4 anos e 8 meses de reclusão. Preso injustamente, poderá cumprir o restante de sua pena fora da prisão com a utilização de tornozeleira eletrônica. Agora, o catador de recicláveis finaliza sua pena ao lado da mãe e de irmãos.

A maior parte das pessoas encarceradas no Rio de Janeiro são presos provisórios, esperando julgamento nos presídios do estado. 4,211 deles ficaram presos indevidamente, pois receberam, ao final do processo, penas menos graves que a prisão ou foram até mesmo absolvidos. Isso é totalmente desproporcional e indevido, tendo em vista que por lei, um juiz só pode decretar prisão preventiva em casos extremos.

Os presos provisórios custam milhões para o cofres públicos, e para eles que tiveram sua vida pausada por dias, meses ou anos, quanto será que custou?

A permanente falta de investimento

Portanto, é notório que são presos indivíduos que possuem baixo IDH e IDS. É imprescindível destacar ainda, que muitos ficam na cadeia sem acesso ao mínimo, e além disso.

Para Julia Feldens,

“se o preso for comparar os maus tratos sofridos pelo sistema penitenciário e o acolhimento das organizações criminosas somado com a falta de perspectiva ao sair da cadeia, é mais fácil se inserir na criminalidade”, disse a bacharel.

Foto: G1/Rio

De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o Rio possui um dos piores presídios de toda a América.

“No Rio de Janeiro, dentro do Complexo Penitenciário de Bangu merece atenção a situação dos Institutos Plácido Carvalho, Nelson Hungria e Jorge Santanna. O presídio Jorge Santanna se encontra em condições extremas de funcionamento, e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos denuncia esse lugar como um dos centros penitenciários em piores condições em toda a América”, afirmou o relatório preliminar divulgado pelo G1, em 2018.

Assim, é visível uma realidade que não muda com o passar dos anos e uma despreocupação estadual. Não se investe em melhores condições judiciais nem penitenciais, ou até mesmo em recursos básicos de sobrevivem nas comunidades do Estado do Rio de Janeiro.

Fernanda Fernandes e Beatriz Vasconcelos

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