(Fonte: honestbrew.co.uk)

Beer boom: o avanço das cervejarias artesanais brasileiras

Bárbara Rudge
Dados e Jornalismo
Published in
9 min readApr 17, 2019

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Por Bárbara Rudge e Carlos E. Berbert

Para quem acompanha os jornais, a economia brasileira parece estacionada num estado permanente de crise — do Rio de Janeiro pós Cabral (o Sérgio e Filho) então, nem se fala. Se os anos 1980, quando o Brasil registrava 1,6% de crescimento, ficaram conhecidos como “a década perdida”, a previsão da FGV para a taxa a ser registrada entre 2011 e 2020 é ainda menor, de 0,9%. Trata-se do desempenho mais fraco em 120 anos. Pois bem, se há um setor na contramão dessa baixa é o mercado cervejeiro que, superando a si e aos fatores externos, tem se mantido e até se expandido — apesar da tal recessão que governos e mídia alardeiam. Em uma década, o número de cervejarias cresceu de 70 para mais de 800, e a projeção é de que em 2019 haja um avanço de 25%. Efetivamente, a prosperidade não sorri para todos, mas com criatividade e espírito inovador, a cooperação dentro da comunidade cervejeira tem feito a diferença na hora de driblar as dificuldades.

Enquanto no lado da produção em grande escala, a AB InBev vê seu modelo desafiado pela expansão da Heineken e o bom desempenho do Grupo Petrópolis (até o momento, ao menos ), as cervejarias artesanais, médias, pequenas, micro ou ciganas, estão em pleno crescimento. As grandes forças industriais já perceberam isso. Tanto que foram às compras, incorporando, dentre outras marcas, a Devassa, a Eisenbahn, a Baden Baden, a Colorado, a Wälls e, mais recentemente, a Ampolis. Noutra frente, lançam versões low premium (segmento que busca oferecer um quê de diferenciação a um preço mais acessível do que as cervejas premium propriamente ditas) de seu próprio portfólio, das quais são exemplo as Brahmas Extra (Lager, Red e Weiss) e as Skol Hops e Puro Malte. Não contentes, ainda aplicam seu polpudo orçamento no poder de fogo da publicidade e assim rebatem as críticas dos detratores e da concorrência.

Gigantes do mercado norte-americano se estranharam em março passado em rede nacional. A arena foi o espaço publicitário do Super Bowl, a grande final do campeonato nacional de Futebol Americano e simplesmente o evento esportivo mais visado por anunciantes devido à sua grande audiência. A peça da Budweiser, marca da AB InBev, faz uma insinuação nada discreta de que as cervejas Miller Lite e Coors Lite, da Molson, levam xarope de milho em suas receitas, ingrediente considerado vilão no combate à obesidade, um dos grandes problemas de saúde dos estadunidenses. Curiosamente, pouco antes do mal-estar, as duas andaram se reunindo com outros players, como a Heineken e a Constellation, para discutir um pacto pela reversão do cenário de queda no consumo de cerveja nos EUA.

No Brasil, uma campanha da Brahma para a Copa de Mundo de Futebol de 2014 também levantava o tema da qualidade. O filmete, rodado na Granja Comary e protagonizado pelo então técnico da Seleção Luiz Felipe Scolari, mostrava a plantação de cevada cultivada exclusivamente para produzir 2014 garrafas de 473ml, uma edição limitada em comemoração à volta da competição ao País após mais de 60 anos. A polêmica foi levantada pelo jornalista Juca Kfouri ao ironizar a pequena dimensão destinada ao plantio e a quantidade de bebida produzida a partir dessa matéria prima. Como para bom entendedor meia palavra basta, muitos consumidores começaram a questionar a veracidade das informações vendidas na publicidade, e até o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária entrou na jogada. Num primeiro momento, a AB InBev se sentiu atacada e emitiu uma nota de ‘repúdio’ às acusações, mas depois teve de se mexer para provar não ter mentido.

Paixão: a base da receita

Trilhando os primeiros passos, Carlos Alberto Franklin, de 54 anos, morador do Tanque, em Jacarépaguá, Rio de Janeiro. Engenheiro eletrônico de formação, começou a se aventurar na cozinha há um ano, não como chef, mas como mestre cervejeiro. Ciente de que essa nova ocupação é mais um hobby (que não é barato, alerta ), Franklin não descarta a possibilidade de fazer disso um negócio. “Num primeiro momento eu não tenho o interesse de comercializar, porém pode ser que um dia as coisas mudem e torne-se interessante”. Embora veja que o ramo de cervejas artesanais tem grande potencial de crescimento, o maior empecilho na visão de Franklin, é, principalmente, a burocracia e os custos envolvidos — cerca de R$ 500 mil. E a opção de tornar-se um cigano no ramo também ainda não lhe atrai, embora reconheça que é a melhor porta de entrada.

Carlos Alberto Franklin e seu portfólio de cervejas. (Foto: Carlos E. Berbert)

Sem ter frequentado os cursos em mestria cervejeira que vêm se multiplicando, presenciais ou online, Franklin aprendeu por conta própria a fabricar a bebida em casa, lendo e assistindo a vídeos gratuitos no YouTube. A iniciativa foi tomada depois que, em conversa entre amigos (regada a uma cervejinha, é claro ) veio a ideia que deu origem à Cervejaria JB — acrônimo de Jardim Botânico.

Incomodado com os aumentos no preço da cerveja, que não se traduzem em melhoria da qualidade, ele vê a produção artesanal como alternativa para quem aprecia a bebida e os sabores e sensações que sua degustação pode oferecer. Nesse ponto, ele considera que os valores acima da média cobrados pelas artesanais compensam. “Eu acredito que o pessoal esteja começando a pegar o gosto pela cerveja artesanal. Existe uma diferença muito grande, comparada com a cerveja industrial, a artesanal tem o custo muito maior. Então, não é qualquer um que vai dar valor a pagar o preço de uma cerveja diferenciada”.

Preferência nacional

Se os estilos de cerveja, apesar da rica variedade, têm parâmetros de classificação definidos, os tipos de cerveja, tais como gourmet, artesanal, especial, são termos que, embora amplamente utilizados, não têm definição legal, bem como o critério para microcervejaria. Segundo documento complementar do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, não há distinção quanto ao porte ou às características dos métodos produtivos. Já as cervejarias ciganas são mais fáceis de se identificar: são produtores que utilizam uma estrutura terceirizada para a fabricação de suas bebidas. Mas, para efeito de mensuração, Eduardo Marcusso, um dos autores do levantamento, estima que as cervejarias consideradas artesanais representem entre 1% e 1,5% do total da produção nacional.

Embora ainda haja chão a se percorrer, os avanços são consistentes e animadores para o segmento artesanal. Graças ao espírito empreendedor, a paixão pela cerveja e a colaboração do poder público, novos rótulos e sabores surpreendentes vêm ganhando espaço em bares, restaurantes e gôndolas dos supermercados. Os festivais, feiras e concursos são um fator essencial na difusão, fomento e valorização da cultura cervejeira.

Segundo os dados de 2018 do Anuário da Cerveja no Brasil, havia no País 889 cervejarias, sendo que 210 foram criadas apenas naquele ano. Isso significa um aumento de 23%. Dos 5.570 municípios brasileiros, 479 tinham, ao menos, uma cervejaria. As três cidades com mais empreendimentos são: Porto Alegre (RS), com 35; Nova Lima (MG), com 19; e Caxias do Sul (RS), com 16. Entre os estados, o Rio Grande do Sul fica na frente, com 186 cervejarias, seguido por São Paulo, com 165, e Minas Gerais, com 115.

A união faz a força

Unidos em torno de associações em diversas instâncias administrativas, as cervejarias locais estão fortalecendo a si e às economias dos municípios em que estão instaladas. Muitas cidades têm, na cerveja, sua grande atração turística. Com isso e além disso, gera empregos diretos e indiretos. Enquanto os pequenos produtores fazem de tudo para sensibilizar o Governo e conseguir, de alguma forma, tornar seus preços mais competitivos e ampliar sua distribuição frente às gigantes transnacionais, estas pressionam a legislação, com seu poder de barganha, a achatar ainda mais as alíquotas sobre seus produtos. Não à toa, as marcas dessas grandes indústrias são hegemônicas.

Embora a burocracia estatal seja um dos principais desafios relatados pelos empreendedores brasileiros, de qualquer ramo, o poder público pode ser um grande aliado quando, por exemplo, destrava os trâmites com criação de leis. Se impostos como o ICMS, IPI, encarecem o produto final, exonerações são um recurso para compensar os custos e manter a saúde financeira das empresas.

Foto: Go on Turismo

O projeto Rota Cervejeira foi um marco para o desenvolvimento da atividade no Rio de Janeiro, com a adoção de medidas de incentivo à instalação de unidades fabris e bares, bem como a organização de eventos que estimulem o turismo cervejeiro. Lançado em 2014 para reacender o interesse comercial e turístico da Região Serrana, prejudicada pelas fortes chuvas de 2011, o roteiro reúne quatro municípios (Teresópolis, Guapimirim, Nova Friburgo e Petrópolis) e nos apresenta 20 de suas cervejarias. Atualmente, a Hanseatic e a The Exp são as agências de turismo que oficialmente oferecem pacotes e itinerários. Apesar de o site e a página no Facebook carecerem de manutenção, a Associação Turística das Cervejarias e Cervejeiros do Estado do Rio de Janeiro, responsável pelo projeto, está ativa, com uma nova diretoria na liderança desde junho de 2018.

O estado do Rio de Janeiro, segundo números divulgados em 2017, abrigava 53 cervejarias. Petrópolis é o berço da primeira cervejaria brasileira, a Bohemia, hoje marca da AmBev, e além dela, abriga cerca de 20 outros produtores, entre grandes fábricas, microcervejarias, cervejarias artesanais e ciganas.

Bauernfest de Petrópolis (Crédito: Edgar Pujol/Tribuna de Petrópolis)

No caso de Petrópolis, há mais de uma gestão, a prefeitura tem mantido uma política de apoio aos assuntos cervejeiros, como a lei de incentivo sancionada em 2017. Além da organização anual da Festa do Colono, a Bauernfest, que celebra a presença germânica no município — regada a muita cerveja, recheada de comidas típicas e animada por danças folclóricas— , há edições quinzenais da Deguste, feira que reúne em praça pública produtores locais e convidados.

Na Cidade Imperial, quase tudo é motivo para promover a produção local. Aliás, essa alcunha foi usada para batizar uma das marcas locais, que também fabrica a Império, rótulo de entrada da cervejaria. Objeto de grandes investimentos, ela vem marcando presença com força, seja em pontos de venda ou em publicidade. Atualmente, é patrocinadora e anunciante em diversos eventos esportivos, da Copa Truck ao Campeonato Carioca.

Fermentando sonhos

Entre as pequenas notáveis, a BrewPoint pode ser apontada como um exemplo de sucesso. Uma importadora de insumos cervejeiros virou, em 2016, uma cervejaria com fábrica própria, e no segundo semestre do ano seguinte, abriu seu brewpub em espaço anexo. O sangue cigano corre desde a pré-história da marca, quando clientes que não dominavam o processo cervejeiro pediram ajuda aos sócios da importadora para produzir a bebida. Nasceu, então a Duzé, a primeira cigana a fermentar nos tanques da Brewpoint antes mesmo do primeiro rótulo próprio.

Pedro Neves, na fábrica da Brewpoint (Foto: Facebook)

“Com o tempo, esta operação nos motivou a começarmos a rascunhar alguns planos de negócios, até verificarmos que alguns eram factíveis de tornarem-se reais”, conta Pedro Neves, sócio da Brewpoint.

Embora hoje a empresa esteja saudável e consolidada, o percurso para as atuais conquistas requereu uma estratégia bem definida. “Nosso primeiro desafio foi a composição do capital inicial necessário para o investimento, neste contexto particionamos a empresa em cotas, e vendemos para parceiros interessados em investir neste segmento. Em sua maioria cervejeiros caseiros que já tinham suas marcas como ciganas ou que tinham esta pretensão.”

Rotuladora a todo vapor (Foto: Facebook)

O engajamento e a proatividade levaram a empresa sediada no bairro do Quitandinha, porta de entrada da cidade de Pedro, a conquistar lugar de destaque e liderança na cena artesanal local, com vistas à influência por toda a região. Não por acaso, é também é uma das forças por trás da AMP, a Associação de Microcervejarias de Petrópolis.

Hoje, a BrewPoint conta com diversos pontos de venda, com boa presença no Rio de Janeiro. O investimento na elaboração de rótulos em parceria com outras cervejarias, trazendo receitas novas também é uma forma de expandir os horizontes de ambas as partes, principalmente junto a entusiastas da bebida que apreciam experiências gustativas. Foi assim que a BrewPoint nasceu e é assim que esta e tantas outras cervejarias estão conseguindo superar obstáculos e se estabelecer.

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