Cultura e Cinema — Arte ou entretenimento?

Matheus Mesquita Falcão
Dados e Jornalismo
Published in
9 min readOct 3, 2016

--

Das horas extras às horas livres, o carioca se desdobra para não dar vez ao ócio. As longas jornadas de trabalho, não tiram o ímpeto dos moradores da cidade maravilhosa de se divertir. Mas o que fazem os cariocas em seu tempo livre? Frequentam quais lugares? Consomem que tipo de cultura? Com qual objetivo? O que significa se divertir? Responder a essas perguntas, — tarefa digna de uma sexta-feira de Globo Repórter — traz também o questionamento acerca da dualidade entretenimento-arte.

Identificar o hábito das pessoas em seus momentos de relaxamento não é uma empreitada fácil. As concepções do que entretêm podem ser completamente distintas e oferecer as mais ricas respostas possíveis. Uma pesquisa sobre hábitos culturais dos cariocas, realizada pela JLeiva, O Baile e pelo Datafolha, com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, servirá de base para que tentemos analisar a questão. O questionamento levantou que, em seu tempo livre, 30% dos heróis e heroínas da semana curtem atividades de mídia, enquanto 18% preferem atividades esportivas e 16% atividades culturais. O leque que se abre diante das atividades culturais é de riqueza inegável:

Principais atividades culturais citadas pelos cariocas

Quando estão dentro de casa, 95% dos cariocas afirmam gostar de ouvir música, enquanto 94% citam os filmes entre as atividades prediletas. Nas ruas, o cinema é o campeão disparado: 68% costumam frequentar as salas mais escuras do país.

CINEMA

O carioca é decidido. Quando vai às ruas para se divertir, tem preferência pelos cinemas. A telona, entretanto, tem uma multiplicidade de vozes, que dão forma aos gostos mais variados. A habilidade de se entreter com arte, todavia, não é para todos. Das explosões, trocas de tiro e derrapadas de um Velozes e Furiosos até a experimentação sexual da melancólica personagem de Ninfomaníaca, de Lars Von Trier, o entretenimento fica disforme e dá lugar ao lugar do incerto, que suscita discussões e deixa o espectador sem palavras.

Parece que o brasileiro, em geral, ainda não se sente atraído por um tipo de cinema que não se enquadra precisamente no modelo ação-comédia. Tal constatação fica nítida quando olhamos o ranking dos 10 filmes mais assistidos em 2015, fornecido pela em ANCINE. Deste seleto grupo, 9 são americanos, 7 representantes da ficção, 2 da animação. Todos eles, excetuando “Cinquenta tons de cinza”, representantes da ação ou da comédia. O típico perfil de conteúdo leve e descartável. A lista dos 10 mais é completada pelo brasileiro “Loucas para casar”, representante da comédia romântica que parece dominar a cena nacional.

Se é bem verdade que os dados da ANCINE dão conta do padrão de consumo nacional, os cariocas, em contrapartida, reforçam nossa hipótese. O perfil dos produtos consumidos se encaixa perfeitamente com a intenção da plateia ao frequentar as salas escuras: 42% apontam “ir passear/se divertir” como a principal motivação. No extremo oposto, apenas 3% ressaltam a importância de “refletir” como aspecto determinante na escolha. O pensamento, nesse caso, fica atrás até mesmo da motivação pela “tela grande com sons e imagens diferenciados”, que tem 4%. Neste momento, cabe questionar se o carioca está entrando em contato com o cinema pela primeira vez, o que justificaria perfeitamente o encanto com a técnica e ambientação diferenciada.

A produção nacional, por exemplo, é alvo de constantes questionamentos. O mercado parece, em certa medida, dominado por lançamentos de comédias românticas, filmadas, na maioria das vezes pela Globo Filmes. Por outro lado, existe no Brasil significativa realização de documentários. Muitos deles, inclusive, de qualidade. Recentemente, “Lixo Extraordinário” concorreu ao Oscar, maior prêmio do cinema mundial, por exemplo. Grandes nomes como Eduardo Coutinho marcaram o gênero em terras tupiniquins. No campo da ficção, também surgem alguns expoentes importantes. Mais recentemente, no grande circuito, os dois filmes da saga “Tropa de Elite” fizeram muito sucesso. Kléber Mendonça Filho, com “Som ao Redor” e “Aquarius” emplacou dois títulos importantes de um cinema de contorno político. A mudança na produção nacional fica retratada em dados da ANCINE:

A diversificada produção nacional aponta para múltiplas oportunidades de assistir os mais variados filmes. Resta, todavia, a imprescindível tarefa de compreender quais são as opções específicas do carioca. Os hábitos da população fluminense são o primeiro plano desta pauta. Depois de explorarmos as riquezas que o país tem a oferecer, realizamos um autêntico jumpcut para investigar os gêneros preferidos, bem como o que tem a oferecer uma ida ao cinema além do óbvio: o próprio filme.

O CARIOCA E AS TELAS

O namoro entre espectadores e projeções é antigo e guarda especificidades de relacionamento sério. Primeira opção na escolha dos programas do final de semana, em casa e nas ruas, a ida ao cinema tem um charme que vai além das horas passadas nas poltronas. Os cariocas afirmam que raramente assistem filmes desacompanhados — apenas 9% são adeptos da prática — e reforçam a necessidade de completar as sessões com outras atividades: 74% realizam algum programa antes ou depois da película. O interesse cresce conforme o nível de escolaridade aumenta. Os gostos também mudam significativamente de acordo com o grau de instrução formal.

Quando estão dentro das salas, os moradores da cidade maravilhosa costumam optar pelos gêneros mais leves, que exigem menos reflexão. 45% preferem assistir filmes de ação, 42% de comédia e 25% romances. A categoria “arte”, entretanto, só foi lembrada por 2% dos entrevistados na pesquisa. As películas voltadas para o pensamento parecem não entreter o grande público, que, quase sempre, busca refúgios para a rotina estressante no trabalho.

Frente a todo esse banquete cinematográfico, fica evidente que, no mercado brasileiro, o grande circuito tem, salvo raras exceções, obras que buscam apenas entreter o espectador. Existe, entretanto, espaço para produções alternativas e uma cultura de consumo de arte que, por menor que seja ainda respira. Sabemos precisamente aonde encontrar o grande público, mas quem são as pessoas que sustentam uma resistência ao ponto comum dos famosos kinoplex?

“Cinema é entretenimento”

Entre essa multidão de amantes da telona é fácil identificarmos o perfil de cada pessoa que procura o cinema como desafogo das atribulações do dia-a-dia. Ficou evidente nos infográficos que a maioria dos adeptos procura os gêneros mais leves, que exigem menos reflexão em seu conteúdo, transformando o momento cinematográfico em lazer.

A estudante de medicina veterinária da UFF, Bruna Azevedo, de 19 anos, se encaixa perfeitamente nesse grupo. Para ela o cinema é uma atividade complementar, lugar perfeito para encontrar os amigos, namorar e esvaziar a cabeça dos problemas e responsabilidades dos dias de semana. Bruna, que costuma ir ao cinema 3 vezes por mês, nem hesitou em dizer que tem maior apreço pelos gêneros de comédia, romance e animação. Segundo a estudante esses segmentos mexem muito mais com a emoção do que com a razão e por isso acabam sendo os mais procurados por aqueles que visam assistir filmes para sentirem-se mais alegres, bem-humoradas ou até apaixonados. A preferência de Bruna é comprovada quando olhamos a lista dos seus cinco filmes favoritos. Dentre eles estão: “ToyStory”, “Os Vingadores”, “Marley e Eu”, “Procurando Nemo” e “Thor”. Percebe-se que todos os filmes citados atendem a essa necessidade.

Pôster do filme “Thor”

Em relação aos filmes nacionais, foram citados os filmes: “Linda de morrer”, “Era uma vez” e “Tropa de Elite”. Apenas a produção cinematográfica, caracterizada por um caráter mais dramático, misturado com conflitos políticos, sociais e com cenas de muita ação, “Tropa de Elite”, destoou dos demais.

“A arte pode divertir”

A relação com o cinema pode, no entanto, extrapolar completamente os limites do entretenimento raso. Existe uma gama de filmes que, apesar de fugirem do grande circuito, podem, vez ou outra, ser encontrados nas salas alternativas. Consumir esse tipo de cultura é estimular o pensamento. Luis Fernando, professor universitário, de 51 anos, é um dos fãs de produções verdadeiramente artísticas. Para ele, o cinema gira em torno do ato de pensar e da beleza das imagens. Ao contrário do que imagina o senso comum, a diversão não vem em segundo plano. Luis mostra que é possível estabelecer um outro tipo de relação com a arte, caracterizando essas atividades como algo que o divertem, mas de uma maneira completamente diferente da concepção tradicional da palavra. Ir ao cinema, dentro dessa perspectiva é uma atividade de percepção que vai muito além do comum, é se permitir emocionar e gerar outras sensações.

Os grandes cinemas de todo o Brasil costumam passar apenas os sucessos de bilheteria. Por mais que seja possível frequentar redes como o “Estação Net”, no Rio, por exemplo, ainda é escasso o número de salas voltadas para esse tipo de programação. A solução para esse problema parece estar justamente na internet. Luis ressalta a importância tanto dos serviços de streaming quanto da anarquia tradicional da rede, que permite o acesso de todos a conteúdos que tradicionalmente são deixados de lado. Existe também a possibilidade de fazer parte de fóruns de discussão, que unem os cinéfilos e geram conversas interessantíssimas acerca do tema. O professor aponta o “Making-Off” como uma das redes interessantes de debate. Só é possível entrar no fórum através de indicação de um dos membros. Todo o site é voltado para produções alternativas, raros são os exemplos do cinema de grande bilheteria dentro das discussões.

Ao ser perguntado sobre os seus 5 filmes preferidos e os três destaques do cinema brasileiro, Luis deixa clara a diferença de gosto entre ele e Bruna. Nas películas nacionais, o professor cita “Lavoura Arcaica”, “Durval discos” e “A história da eternidade”. No tradicional top 5, foram apontados “Gosto de Cereja”, do iraniano Abbas Kiarostami, “Holy Motors”, de LeosCarax, “What Time Is It There?”, do chinês Tsai Ming Liang, “O Cavalo de Turim”, de BélaTarr e “O Livro de Cabeceira”, de Peter Greenaway).

Pôster de “O Cavalo de Turim”

As escolhas apontam a diversidade das produções. Do iraniano Kiarostami, ao Húngaro BélaTarr, passando pelo francês LeosCarax, a nacionalidade não se repete nenhuma vez. Os filmes retratam a expectativa de Luis quando vê um filme: “imagem, câmera e não-ação”. A tríade apontada pelo professor serve como a base de um cinema que pensa por si só, estimulando novos tipos de sensibilidade.

PRODUÇÃO CULTURAL ALTERNATIVA

Apesar da busca incansável do povo carioca pelo entretenimento e lazer, não faltam opções de atividades culturais na cidade maravilhosa. O Rio de Janeiro conta com importantes museus, teatros e outros tipos de espaços históricos que valorizam e guardam importantes informações culturais sobre o Brasil.

Essas alternativas existem por toda a cidade, mostrando que muitas vezes não é a falta delas que justifica a preferência do carioca pelo entretenimento. Um dos mais glamurosos prédios da Cinelândia, o Teatro Municipal, é um ótimo exemplo. Inspirado na Ópera de Paris e inaugurado em 1909, o teatro guarda em seu interior arcadas, balaustradas, colunas e escadarias de mármore importados da Europa, foi completamente reformado em 2009 e, reaberto em 2010, tornando-se ainda mais lindo e pronto para oferecer mais opções de programação para o povo carioca nos tempos livres. Outro bom exemplo a ser citado é a Casa do Pontal, que com quase cinco mil peças, a maioria de arte popular brasileira, reúne obras de dezenas de artesãos de todo o país. Além deles podem ser citados o Museu Nacional das Belas Artes, a Biblioteca Nacional, o Centro Cultural Parque das Ruínas o Museu do Amanhã, entre outros. Também existem espaços autênticos de manifestação popular, como o tradicional samba da Pedra do Sal e do Clube Renascença. Para os que gostam de rap, existem as diversas rodas culturais, acontecendo em vários bairros diferentes todos os dias da semana.

Samba na Pedra do Sal

Em paralelo aos centros tradicionais, as iniciativas culturais também já encontraram seu caminho no mundo virtual. Vários sites e aplicativos já foram criados com o objetivo de dar ferramentas para a produção cultural do Rio de Janeiro. Dessa forma eles estimulam a circulação e o intercâmbio de informações de artistas movimentando novos negócios pela cidade. O MMRJ ( Mapa Musical do Rio de Janeiro), por exemplo, é um aplicativo de mapeamento colaborativo da cadeia produtiva da música do estado do Rio de Janeiro que atende aos músicos profissionais e também aos amadores, uma vez que oferece informações sobre estúdios, lojas de instrumentos e cursos de música por geolocalização. Além dele, também podem ser facilmente encontrados sites com as listagens provisórias e em construção de iniciativas de mapeamento no Rio de Janeiro. Essas plataformas facilitam o reconhecimento de grupos de intercâmbio de metodologias, tecnologias e informações sobre cartografia comunitárias, culturais ou inovadoras na cidade.

--

--