Foto: sempremae.com.br

Desigualdade de gênero na pandemia

Pesquisas evidenciam que o período de confinamento abalou o emocional das mulheres e aumentou ainda mais a sobrecarga das tarefas domésticas

Melina Fagundes
Dados e Jornalismo
Published in
6 min readNov 29, 2020

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Por Manuella Cavalcanti Leal, Melina Fagundes e Valentina Sulam

O impacto da pandemia do novo coronavírus não é o mesmo para homens e mulheres. Segundo pesquisa levantada pelo grupo Mulheres do Varejo, 39% dos homens não sentiram medo no início do isolamento, enquanto apenas 18% das mulheres retrataram o mesmo. No campo da cobrança, um terço das mulheres exigiram mais de si no tocante à produtividade, como prática de exercícios físicos e participação em cursos.

Em relação a conciliar atividades domésticas com a vida profissional, muitas mulheres alegam se sentir mais sobrecarregadas.

Para ¼ delas, a maioria das tarefas domésticas fica apenas sob a sua responsabilidade. Nesse rol, há ainda as que são mães solo, ou seja, as que criam seus filhos sozinhas. Michele Cruz Vieira, professora universitária e mãe de uma menina de cinco anos relata que não é nada fácil dar conta da rotina nesse período de isolamento. Com a filha tendo aulas remotas, ela se desdobra em cuidar da casa, cuidar da sua atividade profissional e também supervisionar o andamento do homeschooling.

Por conta da pandemia, desde março ela não conta com o auxílio da sua funcionária. A responsabilidade de gestão da casa e da filha é 100% atribuída a ela. Além disso, preocupada com os pais nesse período, ela assumiu presencialmente a responsabilidade desse cuidado. Ambos são idosos e exigem uma atenção redobrada. O pai, também professor, requer a atenção de Michele para se adaptar à nova modalidade de ensino a distância, e ela precisa encaixar tudo isso no seu dia a dia.

A sua rotina se tornou ainda mais cansativa. Mesmo reconhecendo o seu privilégio de ser uma mulher branca de classe média, ela acredita que a exaustão física e mental são sentimentos comuns entre as mulheres. Como prova disso, uma pesquisa levantada pela ONG estadunidense Kaiser Family Foundation comprovou que 53% das mulheres sentiram o emocional abalado de alguma maneira no fim de março, enquanto entre os homens apenas 37% alegaram sentir o mesmo.

Isso é consequência de anos de serviços domésticos e de funções como cuidar e educar os filhos serem taxadas como responsabilidade exclusiva do gênero feminino.

Como era de se esperar, acumular tantas tarefas gera impacto na saúde mental das mulheres. A psicóloga Raíssa Lee afirma que, desde o início da pandemia, muitas de suas pacientes retrataram um aumento do sentimento de ansiedade e exaustão.

“Era nítido pelos depoimentos e própria postura corporal de minhas pacientes o cansaço extremo pela cobrança de dar conta de tantas tarefas”, declara a psicóloga.

Para Raíssa não é à toa que com o confinamento houve um aumento expressivo na procura pelos serviços de psicoterapia. Quando a maioria dos estados brasileiros já havia decretado quarentena, a busca por atendimento psicológico no Google atingiu 88%. A pesquisa por esse serviço on-line foi de 41%, de forma que em 2019, na semana de maior popularidade do assunto, a procura era de apenas 11%.

Um levantamento importante trazido por Raíssa foi o de que nos relacionamentos afetivos entre mulheres a sobrecarga em relação ao serviço doméstico não era algo tão evidente. Isso se deve ao fato de que nesses lares, composto por mulheres, de fato ocorre um compartilhamento e divisão de funções e o serviço relativo à casa não é atribuído a uma só pessoa. No caso do relacionamento entre homem e mulher, ela relata que o apoio do homem ainda é visto sob a perspectiva de ajuda, e não efetivamente sob o prisma de divisão equânime de funções.

​A realidade de acumular o trabalho com as tarefas de casa e dos filhos não é novidade para a mulher. A pandemia, no entanto, veio para escancarar a divisão desigual entre os sexos. Hildete Pereira, professora da UFF e pesquisadora de gênero e economia, afirma que a sobrecarga é consequência do cuidado ser taxado na sociedade como responsabilidade apenas das mulheres.

​No sentido de atestar essa sobrecarga existente antes da pandemia, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2018, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), comprovou que as mulheres dedicam mais horas aos afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas, mesmo em atuações ocupacionais iguais às dos homens. Na semana, elas gastam 18,5 horas por semana, enquanto os homens despendem apenas 10,3 horas. Entre os que não trabalham, a desigualdade é ainda maior: 23,8 horas dedicadas pelas mulheres, contra 12 horas pelo sexo masculino.

​O ônus desproporcional do trabalho doméstico (não remunerado) vem sendo intensificado todos os dias pelas mulheres nesse ano de 2020. Com a pandemia, 50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém:

Foto: SOF Sempreviva Organização Feminista

Esse estudo, realizado pela plataforma Gênero e Número em parceria com a SOF Sempreviva Organização Feminista, comprovou como as desigualdades raciais marcam a vida das mulheres. A sobrecarga atinge todas as mulheres, mas não com a mesma intensidade.

Conforme apontou o IBGE, a maioria (61%) das mães solo no país é negra. Nos domicílios compostos por mulheres negras com filhos de até 14 anos, 63% se encontram abaixo da linha de pobreza. Tais mães, além de lidarem com a jornada tripla (trabalhar, cuidar da casa e dos filhos) possuem um pior acesso à condições mínimas de sobrevivência, como um saneamento básico e uma moradia digna. Além disso, sofrem com a falta de recursos fundamentais que auxiliam a prevenção eficaz contra o coronavírus e lutam para garantir a continuidade dos estudos dos filhos. Sem dúvidas, nesses casos, a sobrecarga é sentida com ainda mais impacto.

Ademais, conforme a pesquisa feita pela Gênero e Número mostrou, 40% das mulheres afirmaram que sustentar a casa com toda essa sobrecarga intensificada com o período de isolamento ficou ainda mais difícil. Tal percepção é sentida principalmente pelas mulheres negras (55%), que dizem ter as maiores dificuldades no tocante ao pagamento das contas básicas ou do aluguel. Para amenizar essa realidade do mundo pós-pandemia, a organização do cuidado ancorada principalmente na exploração do trabalho de mulheres negras e no trabalho não remunerado das mulheres é uma situação a ser enfrentada.

Como forma de incentivar essa onda de compartilhamento de tarefas de trabalho doméstico, a ONU Mulheres Brasil lançou em maio uma ação digital #ElesporElasEmCasa para começar a reduzir as desigualdades de gênero e sobrecarga das mulheres nesse momento de pandemia do novo coronavírus. Por meio de fotografias de homens exercendo tarefas familiares, o intuito é mobilizar homens e meninos a incorporarem essa rotina e realmente adotarem novas atitudes no sentido de cuidar dos filhos e da casa.

Para mostrar que este cenário precisa ser alterado, uma pesquisa da Datafolha comprovou a sobrecarga vivida pelas mulheres: 57% das mulheres passaram a conciliar o trabalho remoto com as demandas domésticas. Entre os homens, esse percentual cai para 21%. Um outro levantamento feito pela Gênero e Número em colaboração com a Sempreviva Organização Feminista (SOF), detalhou que uma maioria absoluta das mulheres entrevistadas teve aumento da demanda de preparar ou servir alimentos (80,5%), lavar louça (81%) e limpar a casa (81%).

Mesmo que a divisão de funções ainda continue muito desigual, vale ressaltar que durante a pandemia muitos homens saíram da sua zona de conforto e passaram a fazer tarefas domésticas. Felizmente, pesquisa Datafolha realizada no início de julho com 700 moradores da cidade de São Paulo, evidenciou que 56% dos entrevistados do sexo masculino tiveram que aumentar sua colaboração dentro de casa. 47%, inclusive, passaram a se aventurar na cozinha, de forma que 22% disseram que não cozinhavam antes do isolamento.

Como a pesquisa Datafolha também constatou, 46% dos homens declararam que querem continuar a exercer as funções domésticas depois da quarentena. Assim, ao assumirem os cuidados de casa, a tendência é que os homens mantenham a postura pró-ativa a longo prazo e incorporem efetivamente em sua rotina as funções antes atribuídas exclusivamente a mulher. Quem ganha com tudo isso é a sociedade, que se torna mais igual, justa e sustentável.

Principais conquistas femininas ao longo da história

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