Crime e Covardia. Violência contra a mulher aumenta no Brasil

País teve 1.890 homicídios dolosos de mulheres somente no primeiro semestre de 2020. Rondônia e Acre têm as maiores altas. Delegacias especializadas travam luta inglória

Leandro Caputo
Dados e Jornalismo
8 min readJun 18, 2021

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Mãe, 34 anos, guarda municipal na cidade do Rio de Janeiro, B.C. faz parte do grupo de mulheres que já foram violentadas. Ela enfrentou momentos de desespero, ameaças, xingamentos e violência física ao lado do ex-companheiro e pai de sua filha. Um relacionamento tóxico e perigoso dentro e fora de casa. O ápice foi a tentativa de homicídio dela e do irmão mais novo. Muitos socos, chutes, vidros quebrados, móveis derrubados, sangue por toda parte. Com o agressor transtornado, vizinhos ouviram gritos de socorro e ligaram para o 190. A violência só foi interrompida quando a polícia chegou à casa.

O parágrafo acima é um breve resumo das cenas de terror que B.C. vivenciou por anos de sua vida. Porém, infelizmente, essa é a realidade que milhares de brasileiras enfrentam todos os dias. Segundo uma pesquisa do instituto Datafolha, 76,4% das mulheres que sofreram algum tipo de violência em 2018 conheciam seu agressor. Dentre estes, 23,8% eram maridos, namorados e companheiros, ou seja, possuíam um relacionamento em que se pressupõe a existência de amor.

B.C. foi vítima de violência doméstica e tentativa de homicídio (Reprodução/YouTube)

A história de B.C.

B.C. conheceu o agressor ainda adolescente, no ensino médio, e se apaixonou. Ele era um pouco mais velho do que ela. No início, a relação era perfeita, digna de uma princesa: flores, chocolates, jantares e declarações de amor. Com o tempo, ela começou a perceber mudanças no comportamento dele e não reconhecia algumas atitudes, mas, para ela, tudo não passava de ciúmes e excesso de amor. A paixão era avassaladora. Logo depois, aos 17 anos, B.C. engravidou e teve uma menina.

Após a maternidade, o comportamento do companheiro só piorava: muitos xingamentos, agressões, discussões, e ela estava bastante cansada de viver aquilo. Eles nunca chegaram a morar sob o mesmo teto, o que para ela foi a melhor escolha. O relacionamento desgastou-se de forma muito rápida. Ela, então, decidiu terminar com ele, e, nesse momento, ela levou uma surra. Depois, ele se arrependeu, chorou e implorou por perdão. Com medo e por ter uma filha juntos, ela cedeu, continuou na relação e não contou o ocorrido a ninguém. Contudo, nada mudou: ele continuava fazendo pressão psicológica, a perseguia, ameaçava, ligava 24 horas por dia, aparecia no trabalho dela, a xingava na rua, deixando-a com baixa autoestima e muita vergonha. Por todos esses motivos, o término era impossível.

No início, a relação era perfeita, digna de uma princesa: flores, chocolates, jantares e declarações de amor.

O pior momento foi quando a filha deles viajou com a avó, e B.C. ficou com o irmão mais novo em casa. O agressor invadiu a residência, quebrou móveis, portas, janelas e objetos de todos os cômodos, tentou matar a vítima e o irmão dela. Eles ficaram com hematomas e muito feridos: ela com um corte no pescoço, e o mais novo com um corte profundo no antebraço. Com o barulho, a gritaria e os pedidos de socorro, vizinhos ligaram para o 190 pedindo ajuda. A violência só foi interrompida quando a polícia chegou. B.C. e seu irmão foram de ambulância para o hospital, e o agressor foi preso por ter sido pego em flagrante na invasão de domicílio e na tentativa de homicídio.

O agressor invadiu a residência, quebrou móveis, portas, janelas e objetos de todos os cômodos, tentou matar a vítima e o irmão dela. Foram vários socos na cara, chutes, gritos, sangue espalhado pelo chão e pelas paredes.

Apesar do enorme susto, nenhuma vida foi perdida. Esse foi o motivo para ela dar um basta no relacionamento. Não foi uma decisão fácil, pois ele ligava a todo instante dizendo que daria tiro nela e que mataria sua família. O maior medo de B.C. era perder alguém que ela amava por causa dessa violência. Com a ajuda do pai, ela foi à delegacia e fez a denúncia. Ela também procurou ajuda médica com psicólogos e psiquiatras e entendeu que precisava enfrentar a situação e o medo que a paralisava, dominava e a deixava impotente.

As tristes estatísticas

O Monitor da Violência é uma parceria entre o portal G1, o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e visa discutir a questão da violência no país e apontar caminhos para combatê-la. As informações que aqui serão apresentadas referem-se ao período de janeiro a junho de 2020 e fazem parte de pesquisas periódicas.

Os dados do Monitor da Violência mostram que os homicídios de mulheres aumentaram no primeiro semestre do ano passado. Foram 1.890 mulheres assassinadas em todo o país, representando um aumento de 2% em relação a 2019. Desse total de assassinatos, 631 são feminicídios, ou seja, casos em que a mulher é morta apenas pelo fato de ser mulher, geralmente por conta de ciúmes do companheiro ou por ela desejar a separação. Somente Rondônia teve um aumento de 255% no número de assassinatos. Já o Acre teve a maior taxa de feminicídios no país: 1,8 a cada 100 mil mulheres.

Reprodução/G1

Para entendermos um pouco mais esse cenário, devemos analisar indicadores de outros crimes, como agressões em contexto de violência doméstica e também de estupros. Os números chamam bastante atenção, pois ao contrário dos assassinatos, esses outros crimes tiveram baixa. As lesões corporais em contextos de violência doméstica diminuíram 11% no primeiro semestre de 2020. Os dados de estupros e de estupros de vulnerável tiveram queda de aproximadamente 20%.

Reprodução/G1

Mais homicídios X Menos denúncias

Num cenário de mais mulheres sendo mortas e menos registros acontecendo, entendemos que há subnotificação dos crimes de lesão corporal e de estupros, ou seja, menos mulheres estão denunciando. Durante o isolamento social, as vítimas tiveram mais dificuldade de acessar os canais e fazer a denúncia, e os serviços públicos também reduziram o horário de atendimento, dificultando os registros dos crimes.

Apesar dos dados das raças das vítimas não possuírem total transparência, pois 10 estados não divulgaram as informações de forma completa, podemos concluir que mulheres negras, pobres e de periferia sofreram mais com a violência. Os dados disponíveis mostram que 73% dos assassinatos, no primeiro semestre do ano passado, foram de mulheres negras. Os percentuais caem consideravelmente nos casos de estupros e lesões corporais: aproximadamente 50%, o que também reforça uma maior subnotificação com a raça negra. Como elas vivem em situações mais vulneráveis, elas fazem menos denúncias de lesões corporais e estupros.

Reprodução/G1

Redução nos números representa subnotificação

Polliana Alencar, advogada especialista em violência contra a mulher, afirma que a diminuição dos crimes não letais (estupros e lesões corporais) não representa algo positivo devido ao aumento do número de homicídios. Ela evidencia que o que acontece de fato é muita subnotificação.

A pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em fevereiro de 2019, um estudo feito pelo Datafolha concluiu que 52% das mulheres que sofreram agressão em 2018 nada fizeram. Esse é um fator preocupante, pois casos não denunciados ficam fora das estatísticas.

Polliana Alencar, advogada especialista em violência contra a mulher (Reprodução/YouTube)

A questão é que o homicídio é o fim da linha. Se as mortes aumentam, é certo que os outros tipos de violência também aumentam. Eles acontecem antes do assassinato”, diz Polliana.

A advogada destaca ainda que são diversos os fatores que levam à subnotificação: medo, vínculo financeiro, filhos, o isolamento social por causa da pandemia, o confinamento com o agressor, interrupção nos serviços de acolhimento, falta de informação etc.

Fiquemos atentos!

Precisamos ficar atentos aos sinais! O ciclo da violência contra a mulher costuma ser construído por fases: começa com uma violência menos grave que, se não for interrompida, evolui para uma agressão física e depois a morte. Uma cartilha do Tribunal de Justiça da Paraíba (TJPB), o Violentômetro, apresenta atitudes que não devem ser aceitas e funciona como um sinal de trânsito que vai da cor amarela à vermelha. Chantagear ou ignorar uma mulher são ações que dão um primeiro alerta, a violência vai aumentar. Destruir bens pessoais e brincar de bater são atitudes em nível mais grave. Chutes e abuso sexual fazem parte do momento em que ajuda profissional especializada é muito necessária. Fica o alerta: em briga de marido e mulher, se mete a colher sim.

Reprodução: G1

Um passo nem sempre fácil

Fortalecer a confiança no poder público é um grande desafio a ser enfrentado no país, principalmente, quando se trata da urgência em melhorar o atendimento prestado nas unidades policiais. Para isso, a mulher precisa se sentir protegida e assistida não só pela Justiça, mas também por profissionais de saúde.

Por esses motivos, não devemos julgar. Muitas mulheres não conseguem sequer contar o fato para parentes ou amigas próximas. Nem toda vítima consegue ou pode ser forte e ativa em sua própria defesa, e nem sempre o que as outras pessoas esperam dela é o melhor a se fazer.

Qualquer ajuda faz diferença

A vítima precisa perceber o que está vivenciando, se sentir segura para tomar uma atitude e, ainda, denunciar seu agressor. A discussão do tema é uma iniciativa que se transforma em coragem e apoio para muitas mulheres que estão passando por situações semelhantes, pois elas se sentem fragilizadas e impotentes. Toda e qualquer ajuda é fundamental e pode fazer a diferença.

O que cabe nesse momento é o acolhimento e a orientação para que ela saiba que não está sozinha. É também ter ciência das políticas públicas e das diversas formas para denunciar e, assim, ter uma vida mais digna dali em diante.

Foto: G1

Hoje nossa personagem, B.C., vê tudo o que passou como uma grande lição, um enorme aprendizado. Ela sabe o que quer para si e aprendeu a se amar mais, a se dar mais valor e ser sua prioridade, não aceitar mais qualquer pessoa na sua vida e nem qualquer tipo de tratamento. B.C. agradece a Deus por estar viva, poder contar sua história e servir de inspiração e ajuda para outras mulheres.

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