foto: Sofia Paschoal

Entre idas e vindas

Sofia Paschoal
Dados e Jornalismo
Published in
6 min readOct 7, 2019

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Carla acorda quase todos os dias por volta das três da manhã para conseguir chegar no trabalho antes do nascer do sol. A ex-cobradora e hoje motorista de ônibus já se acostumou a ficar diariamente mais de uma hora na garagem só para vistoriar o veículo que irá guiar naquele dia, já que os motoristas ou linhas não possuem carros fixos e tampouco as empresas contratam funcionários para fazer a inspeção diária dos ônibus. Depois dessa primeira tarefa, cujo tempo não é contabilizado no salário, Carla finalmente sai para a primeira de quatro a nove viagens que precisa fazer por dia, dependendo da linha que está dirigindo. Raramente fica no volante menos que 10 horas diárias, mesmo que a carga horária prevista em lei seja de no máximo sete horas ao dia.

Sem tempo para ir ao banheiro ou se alimentar entre uma viagem e outra, na maior parte dos dias precisa comer ao volante.

“Mal bebo água para não sentir vontade de fazer xixi, porque os passageiros se estressam se eu parar e o despachante também implica na garagem, já que o tempo previsto está quase sempre estourado por causa do trânsito”, conta.

Carla Souza, que acabou de completar 38 anos de idade e sete de profissão, explica que a rotina extremamente estressante ficou ainda pior após a extinção da função do cobrador, que passou a ser acumulada às demais responsabilidades do motorista. “Já era difícil ter que atender um grande número de pessoas, prestar atenção nos pontos de ônibus e vigiar a descida e subida de cada passageiro, sem falar do trânsito caótico da cidade. Agora eu também preciso checar a validação de todos que possuem gratuidade para ver se as pessoas são as mesmas das fotos dos cartões e ainda liberar a catraca, além de ter que lidar com o pagamento e o troco de quem paga em dinheiro. Fica complicado prestar atenção em tantas coisas ao mesmo tempo, ainda mais sabendo que se eu errar vão falar que é por eu ser mulher, e nunca pelo acúmulo de funções em cima do motorista”, desabafa.

Embora se sinta muito importante por levar as pessoas para seus compromissos todos os dias, Carla conta que é uma profissão muito desvalorizada. “Não pensam em nós nem na hora de fazer a manutenção no banco do motorista. A gente vive com dor na lombar, porque quase todos os assentos estão quebrados e não dá nem pra ajustar para a nossa altura. E esse é o menor dos problemas. Se a gente é assaltado, a conta do assalto é nossa. Se eu não pagar a diferença do caixa na prestação de contas no final do dia, fico proibida de trabalhar até conseguir quitar a dívida. As empresas ficam com o dinheiro do seguro e com o nosso, mesmo que a gente faça B.O. ou consiga testemunhas. Sei bem porque meu ônibus já foi assaltado sete vezes”, comenta Carla.

De acordo com a última atualização do relatório divulgado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP/RJ), ocorreram até julho deste ano 9.822 roubos a coletivos. No mesmo período de 2018, foram quase mil assaltos a menos.

“É uma profissão muito bonita, eu amo dirigir grandes veículos e ter contato com o público, mas aqui no Rio é muito difícil. Em SP ainda tem sindicato ativo, mas aqui nem isso. Tem empresas em que além de dirigir e cobrar, o motorista ainda ocupa a função de despachante usando um tablet que a companhia fornece. Por isso que eu digo que a nossa profissão é um perigo, principalmente para a saúde mental”, completa a motorista.

Juntando a precariedade do ramo com a presença cada vez maior dos aplicativos de carros particulares na cidade, muitos motoristas de ônibus acabam enxergando esse crescimento como uma boa oportunidade para melhorar de vida. Adriano Oliveira foi uma das pessoas que desistiram de guiar coletivos para atuar como condutores de carros de aplicativo, como Uber e 99.

“Quando parei de receber as horas extras, resolvi pedir demissão. Eu me sentia explorado, não tinha tempo pra nada. Achei que mudar para os aplicativos seria uma opção melhor. E realmente sou mais feliz agora”, afirma.

Adriano conta também que, como ganha pelo que trabalha, acaba trabalhando ainda mais horas sem carteira assinada, mas que o salário atual é proporcionalmente maior. Por outro lado, ele prepondera: “engana-se quem pensa ser seu próprio patrão nos apps. Não tenho a menor dúvida de que somos explorados a todo momento”.

Quando perguntado sobre as diferenças entre ser motorista de ônibus e de aplicativo, Adriano não hesita em dizer que se sente descartável nas duas posições: “A alta procura por emprego faz com que as empresas paguem o que querem e como querem aos motoristas de ônibus. Nos apps, já existem carros autônomos em testes há mais de um ano nos EUA, daqui a pouco nem vão mais precisar de pessoas para dirigir”, diz. No entanto, além do salário, alguns outros fatores melhoraram com a mudança de profissão. “Fiquei hipertenso aos 26 anos quando dirigia ônibus. É muito estressante. Não sobra tempo nem pra almoçar, o que dirá pra academia e futebol. Hoje é mais tranquilo. Eu trabalho mais, mas consigo organizar melhor os meus horários e sobra mais tempo pra mim”, completa.

Rayllem Rafael, que trabalhou cinco anos como cobrador e há cinco atua como motorista, também não se sentia satisfeito com o seu emprego, sobretudo com a sua remuneração. Por isso, há dois anos complementa sua renda trabalhando também como motorista de carros particulares para aplicativos. “No ônibus, eu trabalho em média nove horas por dia, mas às vezes chego a ter jornadas de 16 horas. Geralmente eu saio de casa por volta das três da madrugada, vou pra garagem, faço a vistoria do ônibus, depois dirijo sem parar até umas 16h, que é quando em dias normais acaba o meu expediente. Só aí consigo almoçar. Depois de comer, pego meu carro e trabalho como uber até as 22h”, conta.

Ao comparar suas duas ocupações, Rayllem afirma que o ônibus acaba sendo mais estressante. “Até porque é mais desconfortável, já que o banco não é ajustado para mim, como no meu carro. Além disso, o número de passageiros é muito maior, né?”, diz. O carioca de 42 anos conta que não se sente valorizado em nenhuma das duas posições, mas que, por mais que pareça estranho, se sente mais seguro trabalhando no ônibus. “Nos aplicativos eu me sinto mais ameaçado porque eu não sei quem vai entrar no meu carro. Já no ônibus pelo menos tem a câmera, que inibe um pouco”, afirma. Apesar disso, Rayllem conta que seu ônibus já foi assaltado algumas vezes e que quem paga a conta é, sim, o motorista. “Em algumas empresas, o seguro cobre até 20 vezes a passagem e acima disso o motorista é que fica responsável pelo valor. Em outras, nós que pagamos tudo. Se a gente reclamar muito, ainda ficamos impedidos de trabalhar até quitarmos a dívida do assalto. Às vezes a gente até faz vaquinha pra ajudar algum colega”, desabafa o motorista.

Carla, Adriano e Rayllem são retratos de uma classe que hoje se divide entre quatro consórcios que dominam toda a frota de ônibus urbanos da cidade: Santa Cruz, Transcarioca, Internorte e Intersul. Cada uma dessas, por sua vez, é responsável por uma área do Rio e comanda as empresas dessa região. O consórcio Santa Cruz é o menor, com nove companhias; Internote e Transcarioca dominam 16 empresas cada, enquanto o Intersul é responsável por outras 17 (fonte: Datalabe). O Sintraturb, Sindicato dos Rodoviários do Rio de Janeiro, estima que a cidade conte com uma frota de 40 mil motoristas de ônibus. Divididos entre apenas quatro conglomerados de empresas, não há muito espaço para reivindicações. “Se a gente abre um processo contra uma companhia, nenhuma outra nos contrata mais. Já vi isso acontecer com vários colegas de trabalho”, conclui Rayllem.

Além dessa questão, os motoristas enfrentam ainda outros dilemas, como a falta de um reajuste salarial que acompanhe a inflação do país, o valor há anos estagnado do vale-refeição e também a falta de condições básicas de trabalho, como horário de almoço e banheiros químicos nos pontos finais.

A prefeitura do Rio de Janeiro estima que hoje 150 mil motoristas de aplicativo atuem na cidade, transportando em média 22 milhões e quinhentos mil passageiros por mês, segundo um estudo da COPPE/UFRJ. Enquanto isso, os 40 mil motoristas de ônibus na capital transportam, no mesmo período, cerca de 105.302.583 pessoas, de acordo com um dado de 2018 divulgado pela Fetranspor.

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Sofia Paschoal
Dados e Jornalismo

Jornalista e estudante de história da arte que trabalha com cinema