Grafite na avenida que dá acesso à Rua Godofredo, na zona Norte, que é controlada pela milícia e usada como rota de fuga por traficantes do Complexo do Alemão. Imagem: Stephanie Rodrigue

Entre milícias e abusos: a política de segurança do Rio

Sté Rodrigues
Dados e Jornalismo
Published in
6 min readSep 25, 2019

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A referência da rua é o ponto de mototáxi e kombis. A subida e o nome do local não revelam muitos detalhes do que se deve esperar. E a presença de pequenos comércios de quintais, ambulantes pelas vielas e frases grafitadas nas paredes não a destacam ou denunciam nada em meio aos incontáveis “gatos” de luz. No entanto, ao se falar a palavra “milícia” se percebe que não se trata de qualquer lugar e qualquer conversa se transforma em sussurros.

Casos como o de Ágatha Félix, quinta criança vítima de uma bala que se “perdeu” ao sair da arma de um policial este ano, faz com que a política de segurança do Rio de Janeiro volte a ser questionada. Pelas redes sociais, milhares de publicações criticaram a ação da Polícia Militar (apesar de outras milhares aplaudirem). Na rua em questão, entretanto, os excessos causados pelos policiais não chocam, porque fazem parte do dia-a-dia dos moradores.

Separada do Complexo do Alemão, local no qual a menina de oito anos perdeu a vida, por apenas uma serra, que, ironicamente, leva a palavra misericórdia no nome, o medo faz parte da rotina. Seja das milícias, seja do barulho dos helicópteros.

Imagem de satélite revela a proximidade entre a Rua e o Complexo do Alemão. O trajeto, no entanto, ignora que existem trilhas (muitas delas feitas pelos bandidos) que diminuem a quilometragem e o tempo de travessia. Foto: Google Maps

A RUA

Localizada no bairro da Vila da Penha, na zona Norte, a rua divide características muito semelhantes com as mais de 170 áreas dominadas por milicianos: transporte irregular, “gatonet”, taxações de comércios. E um poder paralelo formado por policiais e ex-policiais que se autoproclamaram em autoridades absolutas. A punição para os desvios, como abrir um pequeno negócio sem pagar pela “segurança”, muitas vezes é a morte.

O que explica os dados do Datafolha que apontam que 29% dos moradores das favelas têm mais medo dos milicianos do que dos traficantes de drogas (28%). E com a moradora Fernanda, como pediu para ser chamada, não é diferente.

— A milícia a gente não sabe até que ponto eles podem ir. Por que se eles têm apoio de uns políticos e são a polícia, pra quem eu ‘vô’ recorrer? — analisa a estudante que pediu para ter o nome alterado para “evitar possíveis retaliações”.

Criadas nos anos 70 por militares que prometiam à população levar segurança aos locais onde as Polícias e as políticas de segurança não eram eficazes, o termo ‘milícia’ apenas omite organizações criminosas poderosas que aterrorizam mais de dois milhões de pessoas. Entre elas, jornalistas que precisam cobrir as ações criminosas dos grupos.

— Em coletivas e posicionamentos que já presenciei, os próprios órgãos públicos já afirmam que em breve não vai ter mais a [diferença de] denominação [entre] “milícia” e “traficantes”. Nessas operações é que eu realmente sinto medo: na hora que tenho que pegar o meu celular ‘pra’ fazer uma imagem dos milicianos algemados pro site ou redes sociais — relembra o coordenador de reportagem e rede da BandNews, Christiano Pinho.

Ao fundo, a Serra da Misericórdia. Imagem: Google Maps

E os “tribunais de rua”, como O Rappa chamou em sua canção, não são os únicos medos dos moradores da Godofredo Silva e das outras mais de 1000 favelas do Rio. Os abusos e excessos cometidos por policiais colocam a corporação com 18% na mesma pesquisa do Datafolha. A Defensoria Pública e a Alerj investigam atualmente casos de estupro, tortura, agressões, invasões domiciliares, entre outros.

Para o mestre em Filosofia e jornalista Luciano Zarur, que faz questão de enfatizar sua defesa pela “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, os abusos policiais estão diretamente ligados ao passado marcado pela Ditadura Militar e do atual discurso de políticos.

— Uma certa truculência pode ser uma demonstração de poder. Existe o policial corretíssimo, então não se pode generalizar. Mas na minha leitura e na de alguns pesquisadores também, essa violência advém de uma tradição, que é tolerada pelos governantes atualmente no poder, da própria tortura — analisa.

Morro da Babilônia PM é preso por agredir mulher no Rio. Créditos: SBT

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, que leva em consideração os números do ano anterior, 11 a cada 100 mortes violentas intencionais do País foram provocadas pelas Polícias. Um crescimento de 19,6% em relação a 2017. Entre as vítimas, 99,3% são homens, 77,9% são jovens entre 15 e 29 anos e 75,4% são negros.

— Deve se repensar, no mínimo, a questão da utilização de armas de guerra no patrulhamento urbano. Um policial não deveria andar com fuzil, menos ainda o criminoso, obviamente. No entanto, o que se vê é a lógica belicista, da guerra, efetivamente, funcionando dentro de áreas urbanas, densamente povoadas. Então é óbvio que tragédias como a da menina Ághata ocorrem quase toda semana — pontua o mestre.

Infográfico: Leonardo Lima

Diante de uma média de cinco mortes por dia causadas por policiais, segundo dados do ISP, e tendo os negros como os que mais morrem, não é a toa que João*, de 25 anos, precise pensar em cada uma de suas atitudes para não parecer suspeito.

Medidas de segurança para não virar estatística

Morador da zona Norte, o recém-formado em publicidade deixou de colocar insulfilm no carro, evita andar com isqueiros (mesmo sendo fumante), não sai de casa sem a carteira de trabalho e nas abordagens policiais, que são comuns, evita movimentos bruscos e aparentar nervosismo. As medidas, no entanto, não são o suficiente para deixá-lo tranquilo.

— Parece que o próximo sou eu. A sensação é essa! — relata João.

TAMBÉM MORRE QUEM ATIRA

Se o medo é predominante entre os moradores da rua Godofredo e das demais favelas do Rio de Janeiro, também é a realidade dos policiais. Em 2018, 343 civis e militares foram assassinados no País, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A maioria (75%) estava fora de serviço.

E não apenas as trocas de tiros que os estão vitimando. No ano passado, 104 suicídios foram registrados, número maior do que os mortos em horário de trabalho. Um dado que revela que conviver com a atual política de segurança pública não é prejudicial apenas para os moradores de favelas. E para Zarur, os casos podem estar ligados à própria realidade dos policiais e os “fardos” da profissão.

— Boa parte dos policiais é preta ou parda e ele se afasta [dos moradores] ao pôr o uniforme. Muitas vezes saí dali [das comunidades], troca tiro com bandidos, mata, morre e eventualmente causa a morte, que eles chamam de “efeito colateral”, que é a morte de alguém — finaliza Zarur.

O que vem sendo feito

Atualmente na região, a Associação de Moradores é fundamental para garantir direitos básicos na vida dos moradores. Cabe a ela, “negociar” com milicianos, atendentes da Clínica da Família e acionar os Direitos Humanos quando necessário.

Policiais honestos ainda cumprem o seu papel e alguns dos milicianos mais “sanguinários” do bairro (uma vez que não atuavam apenas na Rua) foram presos após investigações quanto as ilegalidades.

A Polícia, por sua vez, não reconhece a atuação da milícia no local. A Prefeitura e o Governo do Estado foram acionados em outra ocasião sobre a irregularidade do transporte e a atuação de milicianos, que impedem a colocação de leitores de Riocard — essencial para a população, mas o problema até a data do fechamento dessa reportagem não havia sido solucionado. Alguns questionamentos enviados via e-mail ficaram sem respostas e a Rua continua tendo seus momentos de medo.

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