O crescimento das milícias no Rio de Janeiro
Da origem ao projeto de poder
A maior ameaça à segurança pública do Rio de Janeiro nos dias atuais, as milícias originalmente foram instituídas como patrulhas de segurança contra traficantes. Estas gangues integradas então por policiais, bombeiros e agentes penitenciários, eram até bem vistas pela população e as autoridades.
A raiz das milícias está nos grupos de extermínio — gangues de policiais e ex-policiais que vendiam serviços de proteção privada a comerciantes na década de 1960. Eram assassinos de aluguel que agiam sob a sombra conivente da ditadura militar. Os gerentes, finalmente, usavam os serviços desses grupos para capturar “subversivos”, ou seja, qualquer um que representasse uma ameaça ao seu poder.
Diferente do tráfico, as milícias são o verdadeiro crime organizado. O lucro não costuma vir das drogas, mas da extorsão dos moradores dos quais os milicianos cobram taxas por serviços básicos como água, gás, transporte alternativo, venda de imóveis, sinal clandestino de TV, Internet e, claro, segurança e ultimamente até aplicativo de transporte. A mensagem é clara: quem não paga não está seguro.
O miliciano tenta representar o Estado dentro das favelas. Pessoas com esse perfil, de cuidador da área, perceberam rapidamente que podiam ganhar dinheiro com isso. Começou com a ideia romântica de proteger a população, até o dinheiro chegar e entenderem a morte como negócio.
Promiscuidade das milícias com a política e os grandes redutos eleitorais:
Em Duque de Caxias, por exemplo, os milicianos roubam petróleo dos oleodutos da Petrobras e fazem mini destilarias nas casas das pessoas. Tudo ilegal, com um risco imenso. Depois vendem combustível adulterado. Eles fazem aterros clandestinos no meio daquela região com dragas e tratores e vão enterrando o lixo de quem pagar. É mil reais por caminhão. Não importa a origem. Pode ser lixo contaminante, lixo industrial, lixo hospitalar. Eles fazem aterros clandestinos nesta região.
A base de uma milícia é o controle militarizado de áreas geográficas. Então o espaço urbano, em si se transforma em uma fonte de ganho. Se você controla militarmente, com armas por meio da violência esse espaço urbano, você vai então ganhar dinheiro com esse espaço urbano. De que maneira? Você vende imóveis. Por exemplo, você tem um programa do governo federal chamado Minha Casa Minha Vida. Você constrói habitações. Aí a milícia vai e controla militarmente aquela área e vai determinar quem é que vai ocupar a casa. E inclusive vai cobrar taxa desses moradores.
Até pouco tempo atrás, os integrantes das milícias — hoje em dia com um perfil mais civil, mas que acolhe de ex-policiais a ex-narcotraficantes — posavam nas fotos de campanha com políticos de alto escalão, se candidatavam e até governavam. Em 2010, por exemplo, causou polêmica a divulgação de imagens e um vídeo gravado em 2007 onde o ex-governador do Rio Sérgio Cabral (PMDB) inaugurava uma rede de abastecimento de água junto a dois líderes do mais poderoso grupo paramilitar da cidade. Os colegas políticos, o então vereador Jerônimo Guimarães, do PMDB, e o deputado estadual Natalino Guimarães (ex-DEM), foram condenados, posteriormente, a dez anos de prisão, em um presídio de segurança máxima, por formação de quadrilha.
O compadrio começou a deixar de ser tão bem visto a partir de 2008, quando um grupo de milicianos torturou dois repórteres e um motorista do jornal fluminense O Dia que investigavam, precisamente, os vínculos entre milícia e candidatos em uma favela carioca. O escândalo, que estragou para sempre a vida das vítimas que tiveram que fugir do Rio, deixando tudo sem olhar para trás, marcou um antes e um depois na condescendência pública com os milicianos, que optaram pelos bastidores da vida política.
Família Bolsonaro e o ápice das milícias:
O discurso da família Bolsonaro, a começar pelo pai já há algum tempo, e posteriormente o pai projetando nos filhos politicamente. Eles são os herdeiros do discurso de um delegado Sivuca, José Guilherme Godinho Sivuca Ferreira, eleito deputado federal pelo PFL em 1990, que é o cara que que cunhou a expressão “Bandido bom é bandido morto”, de um Emir Larangeira, eleito deputado estadual em 1990, do pessoal da velha guarda, do braço político dos grupos de extermínio.
Esse discurso se perpetuou e se consolidou. É claro que os milicianos vão respaldar esse discurso e vão se fortalecer a partir dele. É o plano de segurança pública defendida na campanha eleitoral do Bolsonaro. Ele diz o seguinte: Policiais Militares são os heróis da nação. Policial Militar tem que ser apoiado, respaldado, vai ganhar placa de herói. E será respaldado pela lei, através do excludente de ilicitude. Está lá no programa do Bolsonaro. Então você tem setores que desde a ditadura militar sempre operaram na ilegalidade, na execução sumária, vão escutar esse discurso. É música para o ouvido deles. Não é à toa que o Flávio Bolsonaro fez menções na Assembleia legislativa, deu honrarias para dois desses milicianos presos.
A CPI das milícias:
Desde 2008, mais de 1.100 integrantes da milícia foram presos, entre eles 219 policiais militares, um deputado estadual e 791 civis, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio. Também em 2008, foi concluída uma Comissão Parlamentar de Inquérito das Milícias na Assembleia do Rio, liderada pelo deputado estadual Marcelo Freixo, desde então ameaçado de morte, e que indiciou mais de 250 pessoas. O poder ainda visível da milícia se explica, segundo Freixo, porque as autoridades se concentraram em prender, mas não cortaram suas fontes de renda.
Um levantamento feito pelo The Intercept Brasil, com base em informações obtidas com exclusividade do Disque Denúncia, mostra que, das 6.475 ligações anônimas que o serviço recebeu em 2016 e 2017 — referentes às atividades de traficantes e paramilitares na capital –, 65% delas denunciam milicianos. Como não há dados sistematizados pelo governo sobre o avanço das milícias no Rio, o volume de denúncias — analisadas por palavras-chave — são o mais forte indicativo dos caminhos do crime organizado.
Em pesquisa realizada no mês de agosto de 2019 pelo Datafolha, 29% dos moradores de comunidades têm mais medo dos milicianos do que dos traficantes e dos policiais, 25% têm mais medo do tráfico de drogas, 18% temem a polícia e 21% têm medo de todos na mesma proporção e 7% não soube responder. Entre os moradores da Zona Sul, essa proporção é ainda maior: 38% dos moradores temem mais as milícias. Outros 20% têm mais medo dos traficantes, 24% temem a todos e 12% têm mais medo dos policiais. E 6% não quis ou não soube dar uma resposta para a pergunta.
De acordo com Márcio X, morador de Campo Grande, a milícia ainda é um ‘mal necessário’: “Os direitos humanos tratam como cidadão o criminoso, já um policial que dispara contra um ladrão tem que responder a um processo. Assim a polícia prefere não se envolver e surgem grupos que protegem a população e que fazem o trabalho sujo. É uma Justiça paralela, eu sei que não está correto, mas infelizmente é o que nos resta”.
“Os direitos humanos tratam como cidadão o criminoso, já um policial que dispara contra um ladrão tem que responder a um processo.”
Para Marcelo Freixo, essa ainda é uma visão errônea da sociedade e a milícia não é ‘enfrentada como deveria ser’ no RJ: “é inadmissível que uma parcela imensa da população do RJ não tenha a liberdade de ir e vir e nem sequer possa comprar um botijão de gás. Não é crise só da segurança pública, é uma crise da democracia. A milícia é um dos poucos grupos que transformam o domínio territorial em domínio eleitoral. Interessa muita gente para além da milícia. Por isso, talvez não seja tão enfrentada como deveria ser. Por isso dificilmente algum governador oferece um plano para enfrentar e reduzir o poder das milícias.”.
“Não é crise só da segurança pública, é uma crise da democracia.”