Rio: capital da privação do lazer
Região metropolitana do Rio segrega o acesso ao lazer devido a mobilidade urbana defasada
- por Brenda Vanni e Matheus Hartmann
O direito à mobilidade urbana significa o acesso à cidade. É um direito constitucional essencial, assim como a saúde, a educação e a cultura. É um dos caminhos para garantir tanto a qualidade de vida nas cidades quanto à inclusão social urbana, já que o acesso aos locais de trabalho aparece como uma necessidade fundamental dos trabalhadores, assim como o acesso à cultura e ao lazer. No entanto, é cada vez mais evidente a privação sofrida pelos trabalhadores na hora de usufruir das infraestruturas de cultura e lazer oferecidas na cidade do Rio de Janeiro, ou seja, aquele trabalhador que se desloca por horas nos transportes coletivos, é basicamente bem-vindo nos grandes centros desde que seja para trabalhar e nada mais além disso.
A precariedade da mobilidade urbana no Rio de Janeiro é marcada pela defasagem dos transportes públicos, trânsitos caóticos e a falta de planejamento das cidades. Governos vêm e vão, e poucas mudanças acontecem. O sistema de transporte público, com destaque para disponibilidade das linhas de ônibus, é reflexo da desigualdade social presente no Rio de Janeiro. Em meio a baldeações e trocas de transportes, a diferença do serviço e a qualidade dos ônibus , assim como o tempo de espera, são alguns dos obstáculos enfrentados pela classe trabalhadora.
O historiador e Mestre em Antropologia Cultural, Gabriel Chavarry Neiva, diz que desde a época dos bondes e posteriormente nas lotações dos ônibus, é construída uma ideia de “politicagem”, e que usualmente a política serve a interesses de uma elite no Rio. Ele ressalta que a cidade se demonstra excludente por essa classe muito mais interessada nos lobbys privados das empresas de transporte do que no cidadão. “É muito difícil quebrar essa hegemonia, mas houve certas tentativas, principalmente no primeiro governo Brizola e em certo sentido um pouco com Marcelo Alencar, mas de uma forma geral existe este modelo”, ressalta Gabriel.
Dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2012, e revisados por um estudo da plataforma Moovit nesse ano, classificaram o morador da região metropolitana do Rio de Janeiro como o que leva o maior tempo de deslocamento entre casa e trabalho no país. Quem usa transporte público na região metropolitana do RJ leva, em média, 67 minutos para chegar ao destino. Isso considerando apenas viagens na cidade do Rio e não contabilizando trajetos intermunicipais. Além de metade dos passageiros fazerem duas baldeações por viagem (e outros 15% fazem 3 ou mais trocas), antes de entrar no ônibus, trem, metrô e barca, os passageiros do RJ esperam em média 17 minutos.
Todo esse desgaste somado com a jornada de trabalho apresentam impactos dentro e fora do próprio serviço: produtividade reduzida pela ausência de descanso, aumento de estresse além de restringir a disponibilidade de tempo para lazer, exercícios físicos, atividades criativas e convívio familiar. Todas estas atividades exercem, potencialmente, algum efeito sobre o bem-estar subjetivo das pessoas. Não é algo fora do comum na vida do morador da Zona Oeste ou da Baixada, ter durante a semana, mais tempo gasto em transporte do que de descanso em sua própria residência. O deslocamento até o Centro ou Zona Sul do Rio é feito em massa chega a ocupar 5 horas do dia do trabalhador, às vezes até mais.
Breno Assis dos Santos , 26 anos e morador de Jardim Anhangá, no limite entre os municípios de Duque de Caxias e Magé sabe bastante dessa relatividade. Sua residência está a 40,2 km do centro do Rio. Apesar de Magé e Caxias terem 227.322 e 855.048 habitantes respectivamente segundo o último censo, é no centro da capital que boa parte de seus moradores trabalha. Assim, o transporte público é essencial da vida desses trabalhadores.
A duração do trajeto entre sua residência e o local de trabalho, no bairro da Saúde, Centro do Rio, costuma variar de acordo com as condições de trânsito.
“Durante a semana para ir pro trabalho, eu entro um pouco mais tarde às 10 horas, então pego o ônibus por volta das sete e meia, em média levo duas horas e meia, às vezes um pouco mais. Na volta geralmente é mais tranquilo porque saio depois das sete e o trânsito está menos engarrafado, levo em média uma hora e quarenta e cinco”
Contudo, Breno ainda alerta para situações em que já passou por até 4h para chegar em casa. Além de normalmente se apressar depois do expediente para evitar pegar algum ônibus que passe pela Avenida Brasil, graças a grande ocorrência de assaltos nos transportes que passam pelo trecho, pela correria do cotidiano somada a experiências anteriores, não costuma sequer utilizar dos serviços de lazer, comércio e cultura após o expediente.
A desconexão entre os transportes e a falta de extensão das linhas de trem e metrô é outro grande empecilho enfrentado pela população. 30 de julho de 2016 foi a inauguração da estação Jardim Oceânico, localizada na Barra da Tijuca, zona oeste. A expansão realizada no metrô, que conecta a estação com a General Osório, na zona sul do Rio, de fato impactou positivamente na cidade, mas não minimiza outros problemas.
Demora e irregularidades nas linhas, além das dificuldades de um projeto de expansão adequada a necessidade real (que não cresce em rede, não integra aeroportos, rodoviária e barcas e que exclui outros grandes bairros necessitados) são algumas delas. Um deles se trata inclusive das próprias linhas fantasmas do metrô. Chavarry explica que a ideia deveria ser unir a cidade de todas as formas possíveis.
“A linha da Gávea por exemplo é uma linha que seria complementada por outras estações. Essas linhas fantasmas da Praça da Cruz Vermelha, Praça XV, a famosa de Botafogo perto do mundo novo, todas elas seriam importantes se estivessem ativas, com outros traçados. Existe um projeto de metrô que iria do Méier até Madureira. Isso nunca foi implementado. Pezão e Osório chegaram a prometer, mas claro que esbarraram com essa elite que não quer essa interligação.”
Isso sem mencionar os gastos com esses transportes. Para Breno, o gasto mensal com transporte coletivo costuma chegar a 15% de sua renda, isso por seu emprego se responsabilizar disponibilizando o vale transporte. Ilustrando, se considerarmos hoje o salário mínimo de R$1045,00, uma pessoa que não possua esse benefício em seu trabalho e precise pegar um ônibus intermunicipal (em torno de 6 reais) e um ônibus do Rio (4 reais), tem quase 40% da sua renda ocupada por gastos com transporte.
Acesso a cultura
Agora quando o assunto é cultura e lazer, os espaços e eventos dedicados para estas atividades são justamente concentrados nas regiões Central e Sul da cidade do Rio. Dos 128 museus públicos e privados cadastrados na rede, 88 estão estão localizados na zona sul e centro do Rio. 40 se encontram em outras áreas do município, menos de 32%.
Segundo nosso especialista, a mobilidade urbana suprime completamente o acesso à cultura e ao lazer, isso tem relação com os equipamentos como parques, museus e eventos produzidos que foram construídos durante séculos no RJ. “Mesmo Madureira que teve a construção de um parque, ainda há uma dificuldade de chegar até lá e isso é muito forte no RJ. Existe uma centralização e uma dificuldade de acesso, pois sempre houve de alguma forma uma noção preconceituosa de que só a Zona Sul consome certos equipamentos e construções culturais”, afirma Gabriel.
Para um trabalhador que reside na Baixada Fluminense e sai às 18h do serviço, frequentar alguma atividade ou espaço de lazer/cultura logo após o expediente, torna-se pouco viável. Já nos finais de semana, um período no qual teoricamente o indivíduo possui maiores intervalos para atividades livres, a demanda e os horários dos transportes são reduzidos. Com a mobilidade defasada, a percepção para quem vive essa longa rotina é que determinados espaços não lhe pertencem.
Gabriel elucida que, de forma curiosa, a restrição do horário da Supervia tem a ver com a ideia de quem pode ou não circular na cidade através da cultura. “Por exemplo, existiam vários cinemas na Zona Norte e isso foi suprimido a partir dos anos 90. O Méier tinha quatro cinemas e hoje tem só um que é o Imperator, se é que de fato irá voltar. E isso porque estamos falando de um bairro com uma classe média forte e parte dela bem endinheirada”, complementa o historiador.
O Jardim Anhangá não abriga espaços e atividades culturais. Imbariê, bairro vizinho, existem alguns eventos e atividades os quais Breno já frequentou, entretanto soube desses eventos há menos de 2 anos. A informação e divulgação de qualquer atividade são fracas e não costuma chegar até os moradores próximos, além de amigos e conhecidos de Breno não participarem.
No seu tempo livre, Breno costuma frequentar o Centro e a zona sul do Rio. Ele se utiliza do termo “cidade dormitório” para fazer uma referência ao seu dia a dia. Durante a semana, seu tempo é tomado pelo trabalho e deslocamento até o mesmo. Já nos finais de semana, frequenta a casa de sua namorada na zona sul do RJ e aproveita uma maior facilidade de deslocamento, além da variedade de atividades de lazer e cultura nos arredores. Nesse período, aproveita também para exercer seu principal hobbie, a fotografia.
Perigo dos transportes coletivos
Outro problema são os perigos desses transportes. A volta para casa, durante a semana e principalmente no fim dela, é um fator importante a ser considerado. Seja durante a espera ou dentro dos transportes, o medo de assaltos e furtos faz com que estudantes e trabalhadores mudem a sua rotina e tracem estratégias para chegar em casa com segurança. Aos fins de semana, na volta de festas ou eventos, a maioria das pessoas opta por pedir carros de aplicativo, encarecendo o valor gasto para essas determinadas atividades.
Nos finais de semana, há apenas ônibus “parador” a disposição de Breno. Desde que passou a se deslocar mais para o Rio, Breno passou por duas experiências traumáticas de assalto em um curto período de tempo, ou seja, mais um fator que influencia na decisão de se deslocar ou não até outros locais.
Boa parte do seu círculo de amigos reside nas zonas central e norte do Rio, alguns na zona oeste e poucos na baixada. A perda do contato com boa parte de seus amigos de infância coincide exatamente com o raro tempo que passa em seu próprio bairro.
Mobilidade urbana suprime cultura e lazer
Numa cidade onde a mobilidade aparece defasada, coletivos que promovem saraus de poesia, rodas culturais e feiras começam a ocupar espaços antes ociosos. Contudo, quando esses eventos acontecem, as divulgações não parecem atingir boa parte da população, e por muitas vezes, alguns acabam não acontecendo por falta de espaço e incentivo, como foi ressaltado por Breno anteriormente. Afirmando essa defasagem, Neiva traz importantes reflexões que apontam os motivos de uma estrutura cada vez mais obsoleta e segregadora.
“A insistente precariedade e qualidade desses transportes é baseada no lucro. Na ideia que você pode dar uma infraestrutura muito ruim e tratar o transporte não como um direito à cidade, mas como mercadoria, explica muita coisa. A quem serve esse interesse? Faz com que essas pessoas gastem mais e também aplacar uma certa elite que não quer ser invadida de alguma forma por pessoas de outras áreas.
Por outro lado, uma perspectiva positiva para a cidade são os projetos de arquitetura pública da Tainá de Paula, Mestre em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Co-presidente do Instituto de Arquitetura do Brasil (IAB-RJ). O propósito da ativista das lutas urbanas, busca possuir um planejamento urbano e habitação popular, capaz de assessorar movimentos como o Movimento dos Trabalhadores sem Teto do Rio de Janeiro, União de Moradia Popular e a Rede Bairro a Bairro. Em um âmbito que reflete a falta de políticas públicas, ou de políticas que levam à segregação social, a participação de um movimento popular engajado na luta pelo direito à cidade pode ser um caminho para a democratização do acesso à cultura, assim como em espaços e serviços públicos.