Demografia dos votos da Reforma da Previdência
Texto originalmente publicado em 06/08/2019 na Revista Fórum
Está programada para essa semana a votação do segundo-turno da PEC 6/2019, a Reforma da Previdência. Desde a votação do primeiro-turno, muito se falou sobre o expressivo número de deputados que votaram a favor da Reforma, assim como sobre as “traições” de deputados de partidos centro-esquerda que votaram a favor da reforma mesmo contra indicação de seus partidos.
A figura 1, abaixo, evidencia a grande diferença entre o número de deputados que votaram a favor da Reforma (representados pelos pontos azuis) e os que votaram contra (em vermelho).
A figura 2 mostra a divisão dos votos dos partidos. Ali fica claro que os únicos partidos a votarem 100% contra a Reforma foram PMN, Rede, PC do B, PSOL, e PT, enquanto partidos tradicionais da centro-esquerda brasileira como o PSB e o PDT se dividiram com votos a favor e contra a reforma, e 10 partidos votaram 100% a favor da Reforma, entre eles o partido do Presidente Bolsonaro (PSL), o partido do ex-presidente Temer (MDB) e o partido dos atuais presidentes da Câmara e do Senado (DEM).
Neste post tentamos trazer uma visão diferente do que já foi dito sobre aquela votação: buscamos relacionar os votos dos deputados na reforma com o perfil demográfico dos eleitores que elegeram estes deputados. Pra isso, lançamos mão de dados sobre o número de votos de cada deputado nas eleições de 2018, em cada uma das 5570 cidades do país, disponibilizados pelo TSE. Utilizamos ainda dados demográficos do último Censo de 2010, que descrevem características econômicas e sociais da população de cada um dos municípios brasileiros. Todos os códigos e dados utilizados estão disponíveis livremente em nosso Github.
A figura 3, abaixo, mostra a proporção de votos a favor da reforma da previdência dos deputados de cada estado do país. Quanto mais escura a cor de um Estado, maior é a proporção de deputados daquele estado que votaram a favor da reforma no primeiro turno. Merece destaque nesse mapa o fato de que em nenhum estado os votos a favor da reforma foram minoria. O que mais se aproxima disso é o Ceará, em amarelo, que teve “apenas” metade de seus deputados votando a favor da reforma. Merece destaque também o fato de que quase todos os deputados eleitos por Santa Catarina (93.8%) votaram a favor da reforma e que os deputados da maioria dos estados das regiões Norte e Centro-Oeste votaram massivamente a favor da reforma (mais de 80% dos deputados).
Uma pergunta que nos vem à mente quando olhamos a figura 3 é se os deputados que votaram a favor da reforma foram votados pela maioria da população de seus estados. A resposta para essa pergunta seria trivial se nas eleições de 2018 já estivesse vigorando o fim das coligações (o que passará a valer a partir das eleições de 2020). As coligações facilitam que candidatos com menos votos sejam eleitos em lugar de candidatos com mais votos, graças ao quociente eleitoral. Por isso, para nós faz sentido nos perguntarmos se a diferença entre os votos dados a favor e contra a Reforma da Previdência na Câmara condiz com a diferença entre os votos recebidos por esses deputados enquanto candidatos, nas eleições de 2018.
A figura 4 mostra a proporção de votos recebidos pelos candidatos pró-reforma (quanto mais escuros, maior a proporção de votos em candidatos que quando eleitos votariam a favor da reforma) e confirma que esse número é aproximadamente igual à proporção de votos dados a favor da reforma na Câmara para cada estado da federação. Novamente, Ceará e os estados da região Norte se destacam: o primeiro, porque foi o estado que menos votou em candidatos pró-reforma, comparados com candidatos contra a reforma; os últimos, por terem sido os estados que mais votaram em candidatos pró-reforma, com destaque para o Tocantins, com incríveis 96% de votos em candidatos pró-reforma.
Após identificar essa “foto” dos votos em candidatos a favor e contra a reforma nos Estados, uma outra pergunta que surge é sobre a variabilidade desses votos dentro de cada estado. Sendo o Brasil um país tão desigual, “com uma Bélgica distribuída em todos os estados (os 5% mais ricos de cada estado), uma Índia distribuída em todos os estados (os 5% mais pobres de cada estado) e muitos países diferentes de renda média (de baixa a alta)”, não é automático dizer que os municípios dos estados votaram de maneira uniforme. Para testar isso, mostramos na figura 5 a proporção de votos em candidatos pró-Reforma em cada município do Brasil nas eleições de 2018. Novamente, os municípios em cores mais escuras são aqueles com maior proporção de votos em candidatos que depois votariam a favor da Reforma.
Evidentemente, observa-se uma variabilidade entre os municípios da maioria dos Estados. Particularmente destacamos que em Santa Catarina, um dos Estados com a maior porcentagem de votos a favor da reforma na Câmara, há uma nítida divisão entre Leste e Oeste. Os municípios do Leste do Estado aparecem em cor bastante escura, significando voto em peso nos candidatos pró-Reforma. Enquanto os municípios do Oeste do Estado, reconhecidamente uma região com presença de Movimento Sem Terra e movimento sindical, apresenta pontos mais claros, indicando menor proporção de votos em candidatos pró-Reforma. Fica evidenciado também o contraste entre os votos em candidatos contra a Reforma de eleitores da parte norte de Minas Gerais, conhecido como o Vale do Jequitinhonha, região mais pobre de Minas, com votos em candidatos pró-Reforma em outras regiões do Estado.
A região Norte, por outro lado, está representada por uma imensa maioria de cidades de cor mais escura, o que significa que a maioria das cidades da região deu grande votação a candidatos pró-reforma, o mesmo padrão observado quando analisado o voto dos Estados como um todo.
Outra região interessante para se analisar é a região Nordeste. Por um lado, cidades do Oeste da Bahia, conhecidas pela forte produção agro-pecuária, aparecem em cores bastante mais escuras que a maioria das cidades nordestinas, o que significa que a população daquela região votou massivamente em candidatos pró-Reforma. Por outro lado, a maioria das cidades do Sertão Nordestino apresentam cores mais claras, indicando que a população daquela região dedicou seus votos a candidatos contrários à reforma da Previdência na Câmara.
Esse padrão fica ainda mais claro quando, na figura 6, sobrepomos um polígono branco representando a região semi-árida do Nordeste ao mapa que já apresentamos na figura 5.
O polígono da Figura 6 foi obtido na página da Agência Nacional de Águas, e delimita o que se considera como região semi-árida, uma vasta região que cobre quase todo o interior do Nordeste e boa parte de Minas Gerais. O contraste entre as cidades no interior desse polígono, com cores geralmente mais claras, com as cidades de fora desse polígono, de cores geralmente mais escuras, evidencia que as cidades do semi-árido não dedicaram a maioria de seus votos a candidatos pró-Reforma.
Para sair um pouco do âmbito eleitoral e sermos mais assertivos na análise demográfica, decidimos analisar dados do Censo 2010, que descrevem características sociais e econômicas de cada município brasileiro. Entre as mais de 200 variáveis descritas no Censo, disponibilizados pela Associação Brasileira de Jurimetria, escolhemos algumas que nos pareciam mais diretamente relacionadas à reforma da Previdência.
Uma das principais bandeiras da Reforma da Previdência é que a proporção entre a população economicamente ativa e os aposentados está diminuindo. Ou seja, que a cada dia que passa há menos pessoas trabalhando para cada pessoa aposentada. Os que defendem a Reforma argumentam que as mudanças propostas vão ajudar a manter as contas públicas em dia mesmo com as mudanças no perfil da população. Esse é um padrão geral na população do Brasil, mas é natural que haja variabilidade entre os diferentes municípios, principalmente devido às diferentes condições de vida. Queremos entender como essa relação entre população economicamente ativa e população não-ativa se relaciona com a distribuição dos votos em candidatos pró- e contra- a Reforma. Entre as variáveis do Censo 2010, encontramos na “Razão de dependência” uma potencial candidata para isso.
A “Razão de dependência” representa uma razão entre o percentual da população de menos de 15 anos e da população de 65 anos ou mais em relação à população de 15 a 64 anos. A figura 7 mostra um mapa com a “Razão de Dependência” de cada município brasileiro. Quanto mais claro um município nesse mapa, maior é o percentual da população de menos de 15 e de mais de 65 anos com relação à população entre 15 e 64 anos. Ou seja, quanto mais clara é a cor de um município na figura 7, há menos pessoas economicamente ativas para cada pessoa não-economicamente ativa. Isso pode sugerir que há potencialmente menos contribuições para a Previdência.
O mapa mostra um contraste entre a região Norte, com altos valores de “razão de dependência”, e as outras regiões do país, com valores menores dessa razão. Isso significa que a região Norte tem potencialmente menos pessoas contribuindo para a Previdência que as outras regiões. Justamente a região Norte que, nas figuras 5 e 6, aparece como a região em que os cidadãos votaram mais consistentemente em candidatos pró-Reforma. Se a Reforma tiver como objetivo “diminuir o déficit de contribuição à Previdência”, pode-se dizer que o voto dos eleitores da região Norte foi coerente com sua realidade. Pode-se concluir que os eleitores da região Norte votaram em candidatos pró-Reforma porque, sabendo que a população da região contribui menos com a Previdência que a população de outras regiões, identificaram nas ideias desses candidatos a chance de equilibrar as contribuições.
Entretanto, uma das maiores críticas à Reforma da Previdência é não levar em conta as desigualdades regionais na definição das novas regras de aposentadoria. Principalmente as regras relativas à idade mínima de aposentadoria. No mapa da figura 8 mostramos a expectativa de vida de cada município brasileiro segundo dados do Censo 2010. As cores dos municípios indicam qual a expectativa de anos de vida de um brasileiro nascido naquele município ao nascer, quanto mais claro o município, maior é a expectativa de vida. O contraste entre o Norte-Nordeste e o restante do país é evidente: Norte-Nordeste tem menor expectativa de vida que as outras regiões, cidades no interior da região Sudeste têm a maior expectativa de vida do país. Essa diferença entre os limites pode chegar a 10 anos ou mais.
Supondo que esta expectativa de vida se confirme na vida das pessoas, e supondo que as novas regras de aposentadoria sejam aprovadas, com idade mínima para aposentadoria aos 65 anos para homens e 62 para mulheres em todo o país, imagina-se que os cidadãos das cidades mais claras desfrutarão de mais tempo de aposentadoria que os cidadãos das cidades mais escuras. Comparando este mapa de expectativa de vida com o mapa de votos em candidatos pró-Reforma mostrado nas figuras 5 e 6, fica clara uma triste contradição: a de que eleitores de cidades do Norte do país votaram massivamente em candidatos que apoiam que os cidadãos dessas cidades desfrutem de menos tempo de aposentadoria que cidadãos de cidades do Sul-Sudeste do país.
Conclusões
Nesse post, observando dados abertos sobre as eleições, as votações na Câmara e sobre a demografia brasileira, conhecemos um pouco mais a complexidade deste país. Há uma infinidade de dados abertos que tentam traçar perfis sobre o Brasil. Dados nacionais, dados regionais, dados estaduais, dados municipais e até mesmo individuais. Observado a diferentes escalas, a foto de um país desigual como o Brasil é sempre diferente. O Brasil é complexo, e os 510 deputados e deputadas que representam os mais de 200 milhões de cidadãos e cidadãs têm a árdua e nobre tarefa de entender essa complexidade e tomarem decisões pelo bem do país.
Tivemos uma ideia do que pensam nossos congressistas sobre o que é o melhor para o país na votação do primeiro turno da Reforma da Previdência. Será que pensam que “o bem do país” é garantir que a proporção entre contribuintes à Previdência e beneficiados pela Previdência seja mais equilibrada? Ou “o bem do país” é garantir que cidadãos de diferentes regiões possam desfrutar de período semelhante de aposentadoria? Que possam desfrutar de semelhante qualidade de vida na velhice? Será que os congressistas conhecem a realidade do país a ponto de tomarem as melhores decisões de forma embasada? Podemos ter as respostas para essas perguntas na votação do segundo-turno que se aproxima.
NOTA: em 2010 o Brasil contava com 5565 municípios emancipados, 5 novos municípios foram criados em 2013. Por isso há uma pequena diferença entre os mapas que representam dados eleitorais de 2018 com os mapas que representam os dados demográficos de 2010. Os municípios em cor cinza nos mapas das figuras 7 e 8 são os novos municípios brasileiros, criados em 2013.
Sobre os autores
Charles Novaes de Santana: Cientista da computação, mestre e doutor em mudanças climáticas, com experiência no uso de técnicas de inteligência artificial e de aprendizado estatístico para responder perguntas interdisciplinares. É co-fundador de DataSCOUT, apaixonado por fractais, redes complexas, e por identificar padrões escondidos em amontoados de dados.
Tarssio Barreto: Estudante de doutorado do Programa de Engenharia Industrial da Universidade Federal da Bahia. Dedica o seu tempo ao aprendizado de máquina com particular interesse na interpretabilidade de modelos black box e qualquer desafio que lhe tire o sono!
Fernando Barbalho — Doutor em Administração pela UnB (2014). É cientista de dados no Tesouro Nacional. Pesquisa e implementa produtos para transparência no setor público brasileiro. Usa R nos finais de semana para investigar perguntas que fogem às finanças públicas.
Tomás Barcellos — Economista formado na UFSC (2014). Trabalha no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento desde 2015, atuando hoje como Coordenador de Inovação. É mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Latino-Americanos da UnB.
Leonardo F. Nascimento — Doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos — IESP/UERJ (2013). Pesquisa temas relacionados à sociologia digital e aos métodos digitais de pesquisa. Atualmente é professor do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação da UFBA.