O estado da pandemia nos estados: será a hora de reabrir?

Charles Novaes de Santana
Dadoscope
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10 min readDec 26, 2020
Reabertura do comércio em Manaus (Foto: Bruno Kelli/Amazonia Real)

Artigo originalmente publicado em 10/07/2020 na Revista Fórum

“País de dimensões continentais”, “Brasil de muitos Brasis”, há muitos clichês pra descrever a grandiosidade e a diversidade do Brasil. Essas dimensões e as diferenças regionais nos motivaram a analisar os dados de covid19 a nível de estados. Neste post mostramos que a pandemia se encontra em diferentes estágios a depender de pra onde se olha. Há estados que parecem estar vencendo a primeira batalha contra o covid19, outros que parecem que vencerão em breve, com um pouco mais de trabalho, e há aqueles que parecem apenas estar começando a lutar. Todos os detalhes desse estudo estão no texto abaixo. Como de costume, todos os dados e códigos usados nas análises deste post estão disponíveis no nosso repositório no Github.

Nota metodológica

Antes de começarmos a detalhar o trabalho, é importante notar que para todos os gráficos e análises que seguem nós utilizamos a média de cada 7 dias em vez de representar os dados originais de casos de covid19 e de morte por covid19. Essa estratégia (conhecida como de “Médias Móveis”) serve para evitar o efeito da irregularidade da divulgação dos dados pelos órgãos competentes.

Ou seja, se no fim de semana sempre há uma diminuição no número de casos devido ao atraso na testagem e na segunda-feira há um aumento no número de casos devido aos resultados pendentes do fim de semana anterior, pode parecer que a pandemia está apresentando crescimentos e decrescimentos súbitos, quando na verdade o que há é uma irregularidade na divulgação dos dados. O cálculo das médias móveis suaviza essa curva de dados, dando mais segurança às conclusões de que a pandemia está expandindo ou retraindo: para que o número de casos diminua no gráfico de médias móveis, é necessário que haja uma diminuição ao longo de vários dias. O mesmo acontece para que haja uma subida do número de casos.

Brasil como Epicentro da pandemia

Desde meados de Maio, o Brasil é tratado no noticiário internacional como o novo epicentro da pandemia de covid19 no mundo. Esta classificação está embasada nos crescentes números de casos e mortes que colocaram o país na segunda colocação do ranking de países afetados pela pandemia, atrás apenas dos Estados Unidos de Donald Trump.

Apesar da falta de ação do governo de Jair Bolsonaro, que há 55 dias se encontra sem Ministro da Saúde titular, há quem critique a classificação do Brasil como epicentro da pandemia, alegando, entre outras coisas, que o Brasil é um país com dimensões continentais que não pode ser comparado diretamente com outros países do mundo como Espanha, Itália, França e Reino Unido, de dimensões muito menores. Esses mesmos argumentos são usados para defender a reabertura do comércio, de bares, restaurantes, e até escolas, mesmo que seja notícia em todo o país a super-ocupação de leitos de UTIs.

Estados como países

É verdade que muitos estados brasileiros têm dimensões equivalentes a países europeus. Um bom exemplo deles é o estado de São Paulo, que com seus 45 Milhões de habitantes equivale à população da Espanha, com 46 Milhões de habitantes. Pensando nisso, começamos este texto comparando brevemente o estado da pandemia na Espanha e em São Paulo.

A Figura 1 mostra essa comparação. No gráfico à esquerda representamos a média móvel do número de casos diários de covid19, enquanto no gráfico à direita representamos a média móvel do número de mortes por covid19. Em azul estão os dados do estado de São Paulo, e em vermelho os dados da Espanha como um todo.

Notemos no gráfico à esquerda como o número de casos em São Paulo hoje é bastante semelhante ao pico de número de casos na Espanha e como a curva de casos em São Paulo demorou mais a subir que na Espanha. O primeiro caso na Espanha foi registrado no final de Janeiro e o pico veio 3 meses depois, enquanto o primeiro caso em São Paulo foi registrado no final de Fevereiro, e está chegando nesse momento à mesma quantidade de casos diários que a Espanha teve em seu pico. Ainda não se pode dizer que este é o pico de casos de São Paulo, afinal, você só sabe qual era o pico da curva depois de passar por ele. O máximo que se pode dizer é que São Paulo parece estar em um período em que o número diário de casos está estável, apresentando entre 6000 e 8000 novos casos todos os dias, em média.

O gráfico da direita, entretanto, mostra que o número de mortes diárias em São Paulo é bem diferente do que aconteceu na Espanha. O pico de mortes na Espanha, segundo o gráfico, foi de mais de 800 mortes, enquanto em São Paulo esse pico, até o momento, girou ao redor de 300 mortes diárias. Lembrando que são dados de médias móveis, portanto não podem ser comparados diretamente com os dados de números de mortes diárias observados para cada dia.

A Espanha foi um dos países europeus que mais sofreu com a pandemia. Esses dois gráficos dão uma ideia de que o número de casos no estado de São Paulo é preocupante, principalmente por não haver sinais de que estão diminuindo. Entretanto, o número de mortes em São Paulo ainda é bem inferior ao que foi observado na Espanha, talvez devido a diferenças no perfil das populações, já que a Espanha é um país com população com média de idade mais alta que o Brasil.

Figura 1. Casos e mortes por COVID19 na Espanha e em São Paulo.

A pandemia nos estados brasileiros: será a hora de reabrir?

Agora temos a motivação para olhar a diversidade da pandemia no Brasil a níveis de detalhe um pouco maiores. Cada estado brasileiro pode ser considerado como um pequeno país dentro do Brasil. E a média móvel permite tornar os dados mais homogêneos, minimizando eventuais problemas com a frequência de divulgação desses dados. Sabendo disso, analisamos a média móvel (com janela de 7 dias) do número de casos e do número de mortes por covid19 em cada estado brasileiro, desde o primeiro caso de cada estado até o dia de hoje. Os cenários entre os estados são tão diversos quanto o próprio Brasil.

Classificamos os 27 estados em 4 tipos, representados por 4 cores diferentes: a cor verde representa estados que estão diminuindo o número de casos de covid19 e aparentam estar vencendo a guerra contra o vírus; a cor laranja representa estados que estão numa situação indefinida, aparentemente num "platô", são estados que podem apresentar uma tendência de diminuição no número de casos nos próximos dias mas que também podem apresentar uma tendência de aumento, não há nada definido; a cor vermelha representa os estados que claramente apresentam uma tendência de alta no número de casos; e a cor roxa representa estados que aparentemente se encontram numa segunda onda de crescimento de casos. A mesma analogia é usada para os dados de mortes diárias por covid19.

Essa classificação é arbitrária, mas segue uma lógica já usada em outros estudos. Para contenção completa do vírus, os novos casos devem ser zerados. Estados cujas curvas são representadas em verde são aqueles que já tenham zerado os valores (de casos ou de mortes) ou estejam próximos de conseguir. Estados em laranja são aqueles que poderiam conseguir esse feito em tempo razoável de tempo, que estão no caminho de ficarem verdes, mas ainda precisam dar um passo mais. Estados em vermelho são aqueles que ainda não parecem próximos de zerar suas curvas. É verdade que pode haver incertezas se um estado deveria estar em laranja ou em verde, ou em laranja ou em vermelho, e como nosso critério é arbitrário, ele pode ser falho. Mas a ideia geral é de que o gradiente de cores de verde a vermelho define o quão perto um Estado pode estar de se livrar da pandemia. E os estados em roxo são aqueles que já aparentam estar numa segunda onda da epidemia.

Todos os gráficos que seguem estão em escala livre, ou seja, cada gráfico terá um eixo vertical equivalente à quantidade de casos e de mortes por covid19. O eixo vertical do gráfico de casos de São Paulo tem valores entre 0 e 8000, enquanto o gráfico do Amazonas tem valores entre 0 e 2000, por exemplo. Portanto, não queremos aqui comparar os valores dos gráficos de um estado com os de outro, mas sim queremos comparar o formato da curva de um estado com o formato da curva de outros.

O Amapá, representado na figura 2 por um gráfico de cor verde, apresenta uma diminuição no número de casos. Nenhum outro estado do Brasil apresenta curva parecida a essa.

Figura 2. Casos diários de covid19 desde março até julho de 2020 no Amapá, que apresenta queda bastante marcada no número de novas mortes diárias.

A maioria dos demais estados da região Norte (com exceção de Tocantins) e a maioria dos estados do Nordeste (exceto o Piauí, Pernambuco e Maranhão), além de Goiás e Rio de Janeiro estão representados em gráficos de cor laranja (Figura 3) e apresentam um platô no número de casos.

Figura 3. Casos diários de covid19 desde março até julho de 2020. Em laranja os estados que aparentam estar em um “platô” do número de novas mortes diárias

Os demais estados da região Centro-Oeste, além dos demais estados da região Sudeste e todos os estados da região Sul, todos em gráficos de cor vermelha, apresentam claro viés de alta no número de casos, como mostrado na figura 4.

Figura 4. Casos diários de covid19 desde março até julho de 2020. Em vermelho, os estado que aparentam estar em crescimento no número de novas mortes diárias; e e

E Maranhão, Pernambuco e Tocantins, apresentados em gráficos de cor roxa na figura 5, aparentam estar na segunda onda de crescimento no número de casos de covid19.

Figura 5. Casos diários de covid19 desde março até julho de 2020. Em roxo os estados que aparentam estar enfrentando a segunda onda de crescimento de novos casos diários.

Os dados de número de mortes diárias, por outro lado, oferecem um pouco mais de otimismo que os dados do número de casos. Por exemplo, há 7 estados com evidente tendência de queda no número de mortes, demonstrados nos gráficos em verde da figura 6. São eles Acre, Amazonas, Ceará, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, e Rondônia.

Figura 6. Mortes diárias por covid19 desde março até julho de 2020. Em verde, os estados que apresentam queda no número de novas mortes diárias.

Cinco estados apresentam certa estabilidade no número de mortes diárias, como demonstram os gráficos em cor laranja da figura 7. São eles: Alagoas, Amapá, Espírito Santo, Maranhão e São Paulo.

Figura 7. Mortes diárias por covid19 desde março até julho de 2020. Em laranja os estados que aparentam estar em um “platô” do número de novas mortes diárias

Todos os demais estados, com exceção de Roraima e Tocantins, porém, apresentam tendência de alta no número de mortes, como mostra os gráficos em cor vermelha da figura 8. São 13 estados de quase todo o país (apenas a região Norte não tem representante nessa incômoda lista). Destaque para a presença de todos os estados da região Sul, que recentemente foram destaque na imprensa pela alta no número de mortes.

Figura 8. Mortes diárias por covid19 desde março até julho de 2020. Em vermelho, os estado que aparentam estar em crescimento no número de novas mortes diárias; e e

Por fim, Roraima e Tocantins são estados que parecem estar enfrentando a segunda onda também no número de mortes, como mostra a figura 9, com gráficos roxo.

Figura 9. Mortes diárias por covid19 desde março até julho de 2020. Em roxo os estados que aparentam estar enfrentando a segunda onda de crescimento de novas mortes diárias.

Conclusões

Como vemos, o Brasil é demasiado complexo para ser avaliado como um todo. Nenhum estado se encontra na faixa “verde” ao mesmo tempo no número de casos e no número de mortes. Um sinal a mais dos efeitos devastadores da pandemia. Há estados que parecem estar vencendo a primeira batalha contra o covid19, outros que parecem que vencerão em breve, e há aqueles que parecem apenas estar começando a lutar. Tudo leva a crer que qualquer decisão sobre reabertura ou não das atividades econômicas deve ser tomada a nível local. E há indícios de que alguns estados que já anunciaram o plano de reabertura, como São Paulo, e Bahia, ainda não se encontram no melhor momento para isso.

Sobre os autores

Charles Novaes de SantanaCientista da computação, mestre e doutor em mudanças climáticas, com experiência no uso de técnicas de inteligência artificial e de aprendizado estatístico para responder perguntas interdisciplinares. É cofundador de DataSCOUT, apaixonado por fractais, redes complexas e por identificar padrões escondidos em amontoados de dados.

Tarssio Barreto — Estudante de doutorado do Programa de Engenharia Industrial da Universidade Federal da Bahia. Dedica o seu tempo ao aprendizado de máquina com particular interesse na interpretabilidade de modelos black box e qualquer desafio que lhe tire o sono!

Fernando Barbalho — Doutor em Administração pela UnB (2014). Pesquisa e implementa produtos para transparência no setor público brasileiro. Usa R nos finais de semana para investigar perguntas que fogem às finanças públicas.

Leonardo F. Nascimento — Doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos — IESP/UERJ (2013). Pesquisa temas relacionados à sociologia digital e aos métodos digitais de pesquisa. Atualmente é professor do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação da UFBA.

Henrique Gomide — Professor na Universidade Federal de Viçosa. Mestre e doutor em Psicologia. É consultor pela UFV em ciência de dados e aprendizagem de máquinas. Tem como principais interesses a aplicação de técnicas quantitativas e inovação nas áreas de saúde e educação.

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Charles Novaes de Santana
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Data Scientist — passionate by fractals, networks, animations, and my family