Dicotomia.

Daniel Correia
Daniel Correia
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5 min readJun 11, 2020

Olá, me chamo Daniel. Eu sei, talvez possa ser só mais um no meio da multidão tentando dizer aquilo que sente no coração, aquilo que deseja expressar, mas não me importo. Creio que todas as histórias mereçam ser ouvidas e, portanto, cá estou, pronto para contar todas as minhas histórias, pensamentos, reflexões, ensaios, artigos, poesias, desabafos, enfim, minha vida.

Primeiro de tudo, gostaria de explicar o que significa a dicotomia na minha vida, e sobre como isto sempre esteve ligado a mim. Sou filho de pai negro e mãe branca. Meu pai, hoje professor de matemática, durante sua juventude sempre trabalhou em diversas áreas, desde entregador de panfletos até motorista na prefeitura. Era aquele típico garoto que brincava na rua com seus primos e amigos, nadando no riacho, subindo em arvore, jogando bola, sempre muito ativo. Um dia ele conheceu a música, foi como amor à primeira vista. Dentro da igreja, onde seu pai, um pastor, pregava, começou a estudar música, mas sempre de maneira autônoma. De fato, ali ele encontrou a sua grande paixão. Minha mãe, por sua vez, descendente de italianos, era a típica garota estudiosa do colégio, erudita, formada em piano no conservatório de Campinas, desde sempre apaixonada pelo ensino. Tornou-se professora muito jovem, aplicando-se a área de Artes, sendo esta sua paixão. Um dia, no acaso da vida, os dois se encontraram, com histórias completamente diferentes, mas com uma paixão em comum: a arte. Meu pai ainda não havia se tornado professor, mas, por influência de minha mãe, decidiu sair de seu emprego na época para fazer faculdade (isto enquanto tinham de cuidar de seus filhos — meu irmão, já mais velho, e minha irmã, recém-nascida). Ora, como obra do destino, meu pai havia decidido sua área. Nada mais dicotômico do que Matemática para se contrapor a Arte. Assim se deu a primeira faceta dessa incrível e curiosa ambiguidade conhecida como minha vida.

Desde cedo tive a influência de minha mãe. Com ela conheci o mundo da arte, da poesia, das grandes obras. Aquilo havia me aberto um olhar que jamais esqueceria. Um olhar doce, profundo e, muitas vezes, distante da realidade, um olhar artístico, porém ingênuo. Meu pai, sempre firme, me guiou nos caminhos dos números, tentando (e falhando diversas vezes — culpa minha, assumo) me ensinar tabuada, operações matemáticas e, bom, tantas coisas que nem me lembro. Confesso que não era uma das minhas atividades favoritas quando garoto. No entanto, havia uma camada escondida por trás de tudo aquilo. Com meu pai pude enxergar a realidade das coisas, colocar os pés no chão e enxergar que, na vida, nada se consegue sem luta, sem suor, lágrimas e sangue. Não que meu pai fosse uma pessoa dura, muito pelo contrário, havia uma ternura em suas palavras que, ao mesmo tempo que me corrigia, me dizia que eu poderia superar meus problemas. Penso que, por conta disso, hoje vejo na arte uma forma de trazer a realidade, sempre buscando evidenciar a dura crueldade que é a vida, mas com um toque ingênuo de quem ainda acredita no amor, na arte, na poesia.

Não demorou muito e acabei me apegando a música. Com 14 anos iniciei minhas aulas de bateria contemporânea com um grande professor da Orquestra Sinfônica de São Paulo, erudito, muito inteligente. Mas eu, no auge da minha adolescência, não fazia ideia do que significava tudo aquilo. Ora, meu contato com a música sempre aconteceu de forma natural, afinal morava em um lar de músicos. Mas mesmo assim, não conhecia o mundo que meu professor vivia. Enquanto eu ouvia minhas bandas de rock e sonhava em ser uma estrela da música internacional, meu professor vinha com referências de música popular brasileira que jamais havia ouvido falar. Uma ambiguidade que contribuiu imensamente para minha formação como músico, mas, acima de tudo, como ser humano.

Aos 17 anos chegava a fase que todo jovem teme. Qual carreira seguir? Trilhar os passos de meu pai e seguir na carreira dos números? Ou quem sabe trabalhar com algo que envolva música, assim como minha mãe? Foi um dos períodos mais difíceis de toda a minha vida, pois ao mesmo tempo que eu amava a música, amava a arte, amava conhecer autores, havia em mim uma curiosidade estranha em conhecer outro mundo, um mundo que parecia mais quadrado, mais sério, mais exato. Tomei minha decisão, mudei-me para Pouso Alegre onde iniciei o curso de Engenharia Química. Por que? Não faço ideia, mas acredito que pelo desafio, afinal muitos me diziam que era um curso difícil e que, portanto, eu não serviria para aquilo. Motivado pelo desejo de me provar superior, fui e, subitamente, voltei. Não era aquilo o que eu queria, não havia me adaptado. Perguntei a meus pais se poderia voltar e eles disseram que sim. Disse a eles que tentaria seguir na carreira musical. Concordaram discordando, como sempre. Afinal, como pais, querem que seu filho se torne uma figura de sucesso e, de certa forma, um músico não é visto com bons olhos pela sociedade que valoriza mais os números do que as poesias. Não me importei, enfiei meu rosto nos livros, me dediquei, continuei a estudar música e ao final de tudo aquilo havia conquistado a aprovação! Ingressei novamente em Engenharia Química…

Pois é, pode parecer estranho, sem sentido, mas, novamente devo te lembrar, é a ambiguidade presente na minha vida, não espere algo diferente.

Hoje, no terceiro ano da faculdade, professor de música, creio que carrego a influência de meus pais vivas e, como num doce balanço, revezando qual delas vai tomar a frente em minha próxima ação. O que se espera de mim nada mais é do que a ambiguidade, a dicotomia entre a vida real e a arte, entre a música e os números, entre branco e preto. O que vou fazer? Nem eu sei, vivo uma constante mudança, uma constante alternância entre o meu eu poético e meu eu numérico. No entanto, do contrário do que muitos podem imaginar, já não vejo tal dicotomia como algo ruim, pelo contrário, vejo que construí em mim ao longo de minha vida um olhar ingênuo, do artista que quer se expressar somado a um olhar rigoroso de um estatístico que necessita de dados para comprovar seu ponto de vista. Construí em mim a dicotomia entre as letras e os números. Construí em mim, a dicotomia de minha vida. Muito prazer, me chamo Daniel, o ser mais ambíguo que irá conhecer em toda sua vida, ou não.

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Daniel Correia
Daniel Correia

Estudante de Engenharia Química, ativista do movimento negro, músico e, nas horas vagas, escritor de desabafos.