[04] A sentimental.

Daniela Reis
Bela flor
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2 min readFeb 25, 2017

É interessante olhar para trás… Ainda que tenha sido um período muito atribulado, talvez tenha sido esse o momento em que mais de perto pude sentir o amor da minha mãe. Minha irmã já havia se casado e a sua atenção se dividia entre mim e a minha irmã mais nova. Pequenos gestos, como levar o meu almoço no banco, ou deixar uma mesa arrumada para que os quarenta e cinco minutos de tempo fossem precisamente aproveitados, eram uma grande demonstração de amor para mim.

Nem o relacionamento, nem o corpo, resistiram à pressão do trabalho, da faculdade e da exigência que eu colocava sobre mim mesma. Antes dos vinte anos tive minha primeira estafa.

Ainda assim, me inscrevi para o concurso que me efetivaria como funcionária do banco. Havia três vagas para a agência onde eu estagiava, uma delas eu garanti. Estudei muito para esse concurso. Meu pai, preocupado que eu não fosse aprovada, tratou de entrar em contato com um deputado para pedir uma força. Os concursos para bancos naquela época eram assim, havia uma lista de pessoas que entravam por indicação. Mas esse não foi o meu caso: eu conferi o gabarito assim que saí da prova e minha nota foi exatamente a nota publicada, a terceira mais alta entre os que foram aprovados. Eu seguia o roteiro do sucesso.

Carteira assinada antes de terminar a faculdade, uma realização que para uma pessoa como o meu pai, que prezava pela estabilidade e segurança, poderia ser o suficiente para a vida inteira. Mas logo ele descobriria que não seria para mim.

Há algo importante sobre esse período da minha vida. Talvez até explique um pouco a razão da tensão que havia na relação entre mim e minha mãe.

Desde muito nova, fui uma criança bastante questionadora. Não aceitava facilmente aquilo que era trazido como o certo, o padrão a ser seguido. A religião, por exemplo. Minha família era católica, mas “não praticante”, ou seja, cumpriam os ritos principais da igreja — casamento, batismo — mas não iam muito além disso. E eu, no entanto, desde cedo, trazia um anseio de entender profundamente o sentido da vida. Ao mesmo tempo, tais inquietações me causavam um mal estar difícil de explicar. Eu vivia uma espécie de inferno interior que talvez fosse bastante difícil para eles. Minhas crises existenciais foram muito precoces, e, por isso, eu escrevia. Eram poesias, textos e até cartas para revistas. Certa vez, uma dessas cartas foi lida pela minha mãe antes de ser enviada. Foi um pesadelo. Ela não tinha condições de lidar ou acolher a minha dor, e assim sua única saída foi recriminar o meu gesto de escrever.

Assim, eu crescia tentando sufocar os sentimentos que percebia serem inadequados.

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