Tem Feijoada e tem Acarajé

Daniele Candido
danielecandido
Published in
4 min readJul 20, 2020

Bar/Restaurante em reduto paulistano oferece o melhor da culinária nordestina sem dispensar um clássico do sudeste

Bar do Biu
O movimento de sábado à tarde no Bar do Biu é intenso. Para conseguir uma mesa com rapidezé preciso chegar cedo.

Pinheiros, um bairro tradicionalmente boêmio e descolado, vive hoje o ápice da expansão gastronômica na região. Impulsionado pelas tendências do mercado tecnológico e crescimento de jovens solteiros se mudando para a região, novos empreendimentos começaram a surgir no pedaço que está recheado de cafeterias, bares, restaurantes, hamburguerias entre outros “points hypados”.

Mesmo neste cenário, ainda existem lugares como o Bar do Biu, que abriu há 38 anos e agrada a clientela com o combo imbatível de comidas do nordeste e feijoada todos os dias, diferente da maioria paulistana que serve o prato apenas às quartas-feiras e aos sábados. O que é servido apenas um dia da semana é o acarajé da Dona Edi, esposa do Biu e chefe da cozinha do bar/restaurante, que prepara a especialidade afro-brasileira apenas às quintas-feiras. O motivo, ela garante, é apenas pela falta de espaço para comportar o tacho, utensílio necessário para fritar o acarajé.

Balcão de boteco com vitrine de salgados. Isso representa Sampa mais do que a Paulista e o Ibirapuera.

Dona Edi, que veio da Bahia para São Paulo com 17 anos, começou vendendo marmitex em um pequeno espaço do outro lado da rua que hoje é o bar. Junto com o Biu, pesquisou os lugares que serviam Baião de Dois na cidade e como era preparado. O prato, cujo nome tem relação com uma dança típica do Nordeste, virou o carro-chefe do restaurante e é o mais pedido desde então.

Salão lotado, como de costume

A escolha pelo Bar do Biu, foi uma escolha pela gastronomia brasileira. Como uma amante de comida árabe, japonesa, mexicana, italiana (obviamente), entre outras, decidi por um prato nacional que eu nunca havia comido: o Baião de Dois. Claro que, os ingredientes em si, não são estranhos ao meu paladar, porém, o modo de preparo é o diferencial desta iguaria.

Os temperos e o azeite de dendê (que não é utilizado na maioria das receitas de Baião), são elementos que não uso quando cozinho, o que não deixa de ser uma herança gastronômica de família, que utiliza muito alho, cebola, cheiro verde e azeite de oliva, mas raramente ingredientes mais fortes, como pimentas em geral, ou marcantes, como o coentro.

Meu pedido venho acompanhado por picanha preparada na chapa ao gosto do freguês (bem passado, no meu caso). Não que eu tenha dispensado por completo a carne de sol — ela é o recheio da coxinha preparada com abóbora, que eu comi para enganar o estômago, enquanto aguardava liberar uma mesa no disputado salão do restaurante, o que é corriqueiro em um sábado na hora do almoço.

A manteiga de garrafa à parte e a farinha dão um toque especial nesse prato. Particularmente, amo esses dois itens que muito apreciei nas vezes que fui à Bahia, mas pouco consumo aqui em São Paulo, infelizmente. A combinação de todos esses elementos deixa o prato substancial, além de muito saboroso. Confesso que um pouco pesado para o que estou acostumada a comer no dia a dia, e até um pouco indigesto para quem vive sem a vesícula biliar há uns bons anos.

Baião de Dois com picanha servido com farinha, manteiga de garrafa e salada.

Uma nova experiência gastronômica (como muitas outras) são sempre muito enriquecedoras, e essa não foi diferente. Sai de lá querendo retornar para provar os outros pratos nordestinos servidos no bar. Nunca foi difícil para mim ir além do arroz, feijão, bife e batata. Minha família (pai e mãe) tinha o costume de sempre levar a mim e minha irmã à lugares diferentes para comer, e sempre existiu um incentivo para que experimentássemos comidas diferentes.

São hábitos que fomos adquirindo com o tempo e agregando a nossos gostos e hoje fazem parte de quem somos. Preparar homus em casa, por exemplo, é algo comum, que eu faço com certa frequência, apesar de não ter nenhuma ligação familiar com a cultura árabe. Mesmo assim, esse alimento que pertencente a uma culinária de uma região distante e desconhecida para mim, foi incorporada à minha identidade e meus costumes.

Stuart Hall nomeou uma de suas três ideias modernas de identidade de self pós-moderno. A pessoa não possui um cerne interno estável, de maneira que é formado e transformado continuamente de acordo com os modos que lhe são solicitados ou como é representado na sociedade.

É um self em processo, definido historicamente em vez de biologicamente. Há uma diminuição da cultura global onde as identidades se desconectaram de tempos, lugares, histórias e tradições específicas, e agora enfrentamos uma grande quantidade de identidades em que podemos escolher, quando elas nos atraem.

São Paulo é uma cidade que representa o self pós-moderno: podemos provar pratos da culinária francesa, feitos por chefs imigrantes, e especialidades japonesas preparadas por chefs baianos de forma impecável. As pessoas, cada vez mais, vêm de uma mistura de lugares, ancestrais, locais de nascimento, e estão cientes de manter dentro de uma variedade de identidades que podem vir à tona em momentos distintos. Essa diversidade interna e externa, diz Hall, é a força que está moldando nossa era.

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