Somos tão jovens
Jack the Ripper
Ano 25 da Quinta República.
"Eu vi a mudança que você fez no título."
"Pois é, nós somos uma agência, precisamos relatar apenas o que acontece."
"Mas do jeito que está não diz nada. 'Pessoas combinam encontro em shooping. Lojas fecham as portas'"
"Diz apenas o que aconteceu, sem dar nenhuma opinião. Tirei todo o resto que podia ser visto como tendencioso. Você não concorda que devemos deixar as pessoas chegarem as suas conclusões sozinhas?"
"É verdade. Afinal, somos uma agência. Bom, vou colocar no site."
"Já saiu até na agência. Temos que atualizar o nosso site logo."
"Tá, mas não com esse título. Ele não diz nada. Quem são estas pessoas?"
"Uma molecada da periferia. Marcaram de sair no shopping, a coisa ficou enorme e…"
"Não podemos dizer isso. É discriminador. Vamos apenas dizer jovens. Manter a notícia como ela é."
"Claro, foi modo de dizer, sem preconceito. Mas não eram quaisquer jovens. E tinha um ou outro marmanjo no meio. Vamos deixar isso de lado?"
"Não podemos ficar relatando cada detalhe né? O que importa é a visão geral. E concorda comigo que lojas não se fecham sozinhas. Precisamos dizer quem fechou as lojas. Já sei, 'Jovens marcam grande encontro em shopping, lojistas fecham as portas'"
"Mas dá o mesmo problema. Nem todo mundo era lojista. Tinha gerente com medo de confusão nas suas lojas, encarregados com medo de roubos."
"Se a gente disser que eles tinham medo de roubo vamos estar induzindo as pessoas a pensarem que eles foram lá para roubar. E de novo, não podemos ficar alongando o título com gerentes e encarregados."
"Tá, concordo que não pode ficar longo. Mas não vou colocar que eles fecharam por nada. Dá impressão que são loucos, que não querem clientes. Conversei com alguns gerentes, não dá para ignorar isso. Vou colocar 'Jovens marcam grande encontro em shopping, lojistas fecham as portas temendo tumulto'"
"Entendo. Bem, é seu nome na matéria. Manda ver."
"Ain, que absurdo. Olha a matéria que compartilharam no Face."
"Que podridão. Só porque o pessoal é pobre e preto não pode se divertir. Aí fica todo mundo com medo. Juntou um monte de favelado já é tumulto. Odeio este jornal."
"É, o jornal mente. Porque ele não conta só a verdade? Eu tenho uma conhecida que postou uma foto de um guarda do shopping expulsando um garoto da lanchonete. Absurdo, que revolta."
"Compartilha. Isso o jornal não mostra. Tinha que ter controle sobre isso."
"Pronto, já tem gente defendendo os badernistas. Claro que o guarda expulsou, os lojistas não gostam de baderna. Quem quer fazer compras com um monte de pivete correndo e roubando boné?"
"Poxa cara, mas o shopping não tem direito de escolher quem vai lá ou não. É lugar público. Não pode escolher que vai."
"Público não, é espaço privado. E de qualquer jeito as lojas são privadas."
"Mas se o governo não constrói lugares para eles irem, onde que os pobres vão poder ir para se divertir?"
"Cara, o problema é esse. Eles querem se divertir igual sai na TV. Novela é uma merda, mas o povo vê e quer fazer igual. Não podia ter essa liberdade toda não. Acreditam em tudo que veêm. Tinha que ter controle sobre isso."
"Pronto, troquei a fonte. Agora a fórmula está bem bonita. F=ma, a força é igual a massa vezes a aceleração."
"É, mas isso não é verdade sempre. Não é melhor colocar a fórmula de Einstein ao invés da de Newton?"
"Já explicamos isso no começo do capítulo. Quem quiser se aprofundar procura o resto. A de Newton funciona para os casos mais comuns. Isso já foi discutido, é um assunto maduro. Os estudantes já sabem que tudo é apenas um corte da verdade, uma perspectiva."
"Sim, claro, bobeira minha. Tudo é relativo."
Ano 65 da Revolução
"Este título é muito tendencioso. Que absurdo dizerem isso, 'População celebra a construção da maior ponte do mundo com custo mínimo'. Nem é a maior, e rolou maior corrupção. A ponte liga nada a lugar nenhum. Maldita imprensa controlada. E ainda por cima… Alô? Alô? Mãe, a internet caiu aí?"
"Venha para a sala que tem dois agentes querendo falar com você."
