Diário de bordo: 51 horas num ônibus na África
Livingstone, no Sul da Zâmbia, está há 2900km de distância de Cape Town. Para chegar aqui eu escolhi vir de ônibus, cruzando toda a Namíbia. Durante as 51 horas do percurso deu tempo de assistir a um documentário, ler um livro e ainda ver série. Além disso tentei fazer um diário. Fique à vontade:
Depois de 3 horas fizemos a parada para o almoço. 20 minutos. O primeiro trecho foi calmo. O ônibus é Double Deck, estou em cima, na janela logo depois da escada. Tem espaço e uma boa visão.
Ao meu lado, uma moça da Namíbia. A maioria dos passageiros é sul-africana ou Namíbia, um grupo de sul-coreanos e mais uma meia dúzia de estrangeiros também estão a bordo.
No caminho o ônibus para em pequenos vilarejos. Alguns africâners se juntam a nós. nos vilarejos aliás, as placas indicam que no norte da África do Sul o inglês já não é mais a primeira língua.
Os tons de bege dominam a paisagem. Uma imensa região árida cercada por montanhas ondulares.
Depois de algum tempo de viagem, o sujeito bonachão que conta as pessoas e confere os tickets se aproxima com uma folha sulfite e pede que alguém leia o aviso para todos os passageiros. Um rapaz próximo a mim se voluntaria; se trata de uma oração.
São pelo menos 600km até a fronteira com a Namíbia, ainda falta metade. O ônibus está em.silêncio e eu observo as montanhas. Eu penso que hoje poderia ser 1970, 85 ou 2020; tudo que vejo não parece novo e não dá indícios de transformação.
Foram horas entre montanhas, desertos, elevações de diferentes matizes que agora recebem atrás de si o sol posto depois de mais um dia. O céu azul bem claro, e lilás, e laranja, com nuvens que se espairam brancas e iluminadas é um dos mais bonitos que já vi deste lado do Atlântico.
Com tudo isso é inevitável pensar como somos minúsculos nesse mundo. Penso em quando foi a última vez que refleti sobre isso, quando meus amigos pararam para pensar nessas brisas, por que a gente corre o tempo todo? para onde estamos correndo? a gente precisa acelerar mesmo? até quando? Se a gente não parar de querer tudo quanto antes talvez seja tarde demais.
Durante a noite chegamos à fronteira da Namíbia. Estamos no meio do nada mas agora noutro país. A imigração é demorada e descubro que a moça ao meu lado é professora; foi à Cape Town em uma semana de férias. Pergunto sobre os canyons e dunas de seu país ela disse que são lindos, com sorriso no rosto — mas infelizmente ela nunca esteve nesses lugares que atraem tanta gente do mundo todo, para ela é muito caro.
Uma outra moça percebe que sou turista e se aproxima enquanto esperamos a inspeção da bagagem. Ela vai fazer 26 anos na semana que vem e está fora de casa há 4, sendo que os últimos 2 passou em uma vila em Madagascar fazendo trabalho humanitário.
Daria pro ganizar um Ted com as histórias que eu ouvi pelo caminho. É impossível ser indiferente sabendo que enquanto isso tem uma garota da Califórnia cuidando de pessoas com malária numa ilha sem nenhuma infraestrutura.
Ela conta que quando estava para vir para a África do Sul sua melhor amiga contraiu uma infecção e estava em estado grave. Ela não tem notícias.
Acordo com a lua cheia e laranja, já baixa, finalizando mais uma jornada. Pouco depois o sol começa a nascer no deserto do Kalahari. Absolutamente nada no horizonte a perder de vista.
Já estou na primeira parada do segundo trecho da viagem, não faço ideia de onde. Durante a manhã estive em Windhoek, a capital da Namíbia que parece aquelas cidades que sediam Juca. Fica numa região montanhosa e verde, exceção em meio a tanto deserto.
Nela Visitei alguns museus. A trajetória da recente democracia é parecida com a da África do Sul, muitos presos políticos entre 1965 e 85 inclusive coabitaram Robben Island com Mandela.
Em um dos museus conheci franceses que procuravam há 3 dias por uma quarta pessoa para iniciar a viagem pela Namíbia. Infelizmente eu não tinha bem tempo nem grana para acompanhá-los, mas a moça de Madagascar estava justamente procurando por um grupo para se juntar. Passei os contatos e espero que tenha rolado. Presto cada vez mais atenção em cada encontro banal pelo caminho; nunca é à toa.
O ônibus agora é mais apertado, daqueles de viagens curtas, embora essa seja tão demorada quanto a primeira. Se existe rodoviária em Windhoek, não conheci; o embarque foi feito na rua, em frente ao escritório da viação.
Pelo segundo dia está passando “12 é Demais” no monitor do ônibus — sem som, é claro. O curador da Sessão da Tarde pelo visto também da as cartas por aqui.
Desde que saí de Cape Town, a cada parada vai caindo a ficha, percebo que vou saindo da bolha. Casas de barro e telhado de palha aparecem com mais frequência; a rodovia virou estrada de terra e o ônibus segue em ziguezague.
Depois de muitas chacoalhando no ônibus quente, chego à Livingstone. Pela janela vejo um grupo de taxistas se acotovelando e sorrindo para os passageiros. O ponto final é numa esquina, rua de terra, parece caótico.
Decido ir andando para o hostel que não reservei. Pelo caminho, mulheres com bacias na cabeça, muitos táxis buziando para mim, todo tipo de alimento vendido em barracas na rua. Cheguei. Estou na África.