Diário de bordo: 51 horas num ônibus na África

Rafa Lima
Daoravida
Published in
5 min readJun 14, 2017

Livingstone, no Sul da Zâmbia, está há 2900km de distância de Cape Town. Para chegar aqui eu escolhi vir de ônibus, cruzando toda a Namíbia. Durante as 51 horas do percurso deu tempo de assistir a um documentário, ler um livro e ainda ver série. Além disso tentei fazer um diário. Fique à vontade:

Primeira parada para almoço em um vilarejo no Norte da África do Sul. (Foto: Rafa Ferreira)

Depois de 3 horas fizemos a parada para o almoço. 20 minutos. O primeiro trecho foi calmo. O ônibus é Double Deck, estou em cima, na janela logo depois da escada. Tem espaço e uma boa visão.

Ao meu lado, uma moça da Namíbia. A maioria dos passageiros é sul-africana ou Namíbia, um grupo de sul-coreanos e mais uma meia dúzia de estrangeiros também estão a bordo.

No caminho o ônibus para em pequenos vilarejos. Alguns africâners se juntam a nós. nos vilarejos aliás, as placas indicam que no norte da África do Sul o inglês já não é mais a primeira língua.

Os tons de bege dominam a paisagem. Uma imensa região árida cercada por montanhas ondulares.

Vista do ônibus ainda na África do Sul. (Foto: Rafa Ferreira)

Depois de algum tempo de viagem, o sujeito bonachão que conta as pessoas e confere os tickets se aproxima com uma folha sulfite e pede que alguém leia o aviso para todos os passageiros. Um rapaz próximo a mim se voluntaria; se trata de uma oração.

São pelo menos 600km até a fronteira com a Namíbia, ainda falta metade. O ônibus está em.silêncio e eu observo as montanhas. Eu penso que hoje poderia ser 1970, 85 ou 2020; tudo que vejo não parece novo e não dá indícios de transformação.

Foram horas entre montanhas, desertos, elevações de diferentes matizes que agora recebem atrás de si o sol posto depois de mais um dia. O céu azul bem claro, e lilás, e laranja, com nuvens que se espairam brancas e iluminadas é um dos mais bonitos que já vi deste lado do Atlântico.

Com tudo isso é inevitável pensar como somos minúsculos nesse mundo. Penso em quando foi a última vez que refleti sobre isso, quando meus amigos pararam para pensar nessas brisas, por que a gente corre o tempo todo? para onde estamos correndo? a gente precisa acelerar mesmo? até quando? Se a gente não parar de querer tudo quanto antes talvez seja tarde demais.

Durante a noite chegamos à fronteira da Namíbia. Estamos no meio do nada mas agora noutro país. A imigração é demorada e descubro que a moça ao meu lado é professora; foi à Cape Town em uma semana de férias. Pergunto sobre os canyons e dunas de seu país ela disse que são lindos, com sorriso no rosto — mas infelizmente ela nunca esteve nesses lugares que atraem tanta gente do mundo todo, para ela é muito caro.

Uma outra moça percebe que sou turista e se aproxima enquanto esperamos a inspeção da bagagem. Ela vai fazer 26 anos na semana que vem e está fora de casa há 4, sendo que os últimos 2 passou em uma vila em Madagascar fazendo trabalho humanitário.

Daria pro ganizar um Ted com as histórias que eu ouvi pelo caminho. É impossível ser indiferente sabendo que enquanto isso tem uma garota da Califórnia cuidando de pessoas com malária numa ilha sem nenhuma infraestrutura.

Ela conta que quando estava para vir para a África do Sul sua melhor amiga contraiu uma infecção e estava em estado grave. Ela não tem notícias.

Acordo com a lua cheia e laranja, já baixa, finalizando mais uma jornada. Pouco depois o sol começa a nascer no deserto do Kalahari. Absolutamente nada no horizonte a perder de vista.

Já estou na primeira parada do segundo trecho da viagem, não faço ideia de onde. Durante a manhã estive em Windhoek, a capital da Namíbia que parece aquelas cidades que sediam Juca. Fica numa região montanhosa e verde, exceção em meio a tanto deserto.

Nela Visitei alguns museus. A trajetória da recente democracia é parecida com a da África do Sul, muitos presos políticos entre 1965 e 85 inclusive coabitaram Robben Island com Mandela.

Em um dos museus conheci franceses que procuravam há 3 dias por uma quarta pessoa para iniciar a viagem pela Namíbia. Infelizmente eu não tinha bem tempo nem grana para acompanhá-los, mas a moça de Madagascar estava justamente procurando por um grupo para se juntar. Passei os contatos e espero que tenha rolado. Presto cada vez mais atenção em cada encontro banal pelo caminho; nunca é à toa.

Fronteira entre Namíbia e Zâmbia. (Foto: Rafa Ferreira)

O ônibus agora é mais apertado, daqueles de viagens curtas, embora essa seja tão demorada quanto a primeira. Se existe rodoviária em Windhoek, não conheci; o embarque foi feito na rua, em frente ao escritório da viação.

Pelo segundo dia está passando “12 é Demais” no monitor do ônibus — sem som, é claro. O curador da Sessão da Tarde pelo visto também da as cartas por aqui.

Desde que saí de Cape Town, a cada parada vai caindo a ficha, percebo que vou saindo da bolha. Casas de barro e telhado de palha aparecem com mais frequência; a rodovia virou estrada de terra e o ônibus segue em ziguezague.

Interior da Zâmbia. (Foto: Rafa Ferreira)

Depois de muitas chacoalhando no ônibus quente, chego à Livingstone. Pela janela vejo um grupo de taxistas se acotovelando e sorrindo para os passageiros. O ponto final é numa esquina, rua de terra, parece caótico.

Ponto final do ônibus em Livingstone, Zâmbia. (Foto: Rafa Ferreira)

Decido ir andando para o hostel que não reservei. Pelo caminho, mulheres com bacias na cabeça, muitos táxis buziando para mim, todo tipo de alimento vendido em barracas na rua. Cheguei. Estou na África.

Mercado de rua no centro de Livingstone, Zâmbia. (Foto: Rafa Ferreira)
Mercado de roupas no centro de Livingstone, Zambia. (Foto: Rafa Ferreira)

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