Ciberacontecimento: o íntimo tornado público

Letícia Rossa
Das Teorias
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9 min readJun 28, 2016

Por Christian Gonzatti, Letícia Rossa, Melina Leite

O Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos, dividido em quatro segmentos de estudo, tem na linha de pesquisa 2 os aprofundamentos empíricos e teóricos referentes às Linguagem e Práticas Jornalísticas. A LP2 tem como propósito investigar os processos midiáticos e seus respectivos desdobramentos em produtos jornalísticos. Em suas dissertações e teses, a linha verifica e se valida (n)as rotinas produtivas, (n)os contextos, (n)as mensagens e (n)a configuração de memórias na sociedade midiatizada — conforme explicita em sua própria definição no site oficial da Unisinos.

A exemplo das demais linhas de pesquisa do PPGCOM, a LP2 tem caráter multidisciplinar. Ou seja: considera, também, conceitos de outras áreas (e linhas) em sua formatação.

A “linha do jornalismo”, como é reconhecida pelos discentes do PPGCOM, foi apresentada e discutida em sala de aula no dia 31 de maio. A fim de contextualizar a turma em relação aos projetos estudados e ao corpo docente que movimentam a LP2, foram evidenciados os percursos dos quatro professores que coordenam as pesquisas (uma destas profissionais, no entanto, despediu-se há poucas semanas da linha).

Christa Berger: Não atua mais na LP2 da Unisinos, mas devido às suas contribuições para a edificação da linha de pesquisa e do PPGCOM da universidade, trazemos um pequeno histórico da pesquisadora. Christa é professora aposentada da UFRGS, pesquisadora do CNPq com a pesquisa “Da circulação de saberes: jornalismo e ciências sociais”. É formada em Comunicação Social — Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS (1973), Mestrado em Ciência Política pela Universidade Nacional Autônoma de Mexico — UNAM (1979), Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo — ECA/USP (1996). Fez estágio de Pós-Doutorado em Teorias do Jornalismo na Universidade Autônoma de Barcelona — UAB (2003). É professora de Teorias da Comunicação e disciplinas de Jornalismo nos cursos de graduação e de pós-graduação. Publicou o livro “Campos em Confronto, a terra e o texto” pela editora da UFRGS. Organizou o livro “Jornalismo no Cinema”, também, editado pela UFRGS. Coordenou, em conjunto com Beatriz Marocco, os dois volumes de “A Era Glacial do Jornalismo”, publicados pela editora Sulina. É membro do Comitê de Assessoramento do CNPq para a área de Comunicação.

Ronaldo Henn: Tem Graduação em Comunicação Social Habilitação em Jornalismo pela Unisinos (1984), Mestrado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), Doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000) e Pós-Doutorado na Universidade Nova de Lisboa. Atualmente é professor adjunto da Unisinos e atua como pesquisador no PPG em Ciências da Comunicação, com pesquisas que abordam a produção de acontecimento nas redes sociais digitais com foco nas mobilizações de ocupação global, movimentos comportamentais e outras narratividades. É pesquisador PQ/CNPq Nível 2. Participa do GT Estudos do Jornalismo da Compós (foi coordenador e vice entre 2009 e 2012) e do GP Semiótica da Comunicação da Intercom. Foi membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo.

Maria Clara Aquino Bittencourt: Pós-Doutora em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM da Unisinos. Doutora e mestre em Comunicação e Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Graduada em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, pela Universidade Católica de Pelotas. Atua na área de Cibercultura, com ênfase no campo acadêmico, principalmente nos seguintes temas: convergência midiática, espalhamento de informações, movimentos e mobilizações sociais em rede, hipertexto e jornalismo digital. Membro dos Grupos de Pesquisa Estudos em Jornalismo (GPJor) e Laboratório de Investigação do Ciberacontecimento (LIC), na Unisinos. Membro do corpo docente dos cursos de Jornalismo e Comunicação Digital da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Beatriz Marocco: Tem Graduação em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1971), Mestrado em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1997) e Doutorado em Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona (2002). Atualmente é professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Atua na área de Comunicação, com ênfase em Teoria e Ética do Jornalismo, principalmente nos seguintes temas: jornalismo, teorias do jornalismo, discurso jornalístico, crítica das práticas jornalísticas, livros de repórter, autorialidade, subjetividade, comunicação. Editora da Verso e Reverso (www.versoereverso.unisinos.br). Autora do livro “Prostitutas, jogadores, pobres e vagabundos no discurso jornalístico” (Editora Unisinos, 2004), co-organizadora do livro “A era glacial do jornalismo. Teorias Sociais da Imprensa”, 2 volumes (Sulina, 2006, 2008), organizadora do livro “Entrevista, na prática e na pesquisa” (Libretos, 2012). Fez estágio pós-doutoral na Université Stendhal, Rennes III, sob a supervisão de Roselyne Ringoot.

O caso Amanda Todd

A produção discutida na parte inicial da aula — a cargo de Christian, Letícia e Melina — é de autoria de Ronaldo Hehn, professor da LP2 e orientador dos três alunos. No artigo “Apontamentos sobre o ciberacontecimento: o caso Amanda Tood”, Hehn traz, de início, considerações referentes à história midiática de Amanda Todd, uma adolescente canadense que se suicidou aos 15 anos de idade após sofrer cyberbulliyng por cerca de três anos. Quando tinha 12 anos (7ª série), ela participava de uma conversa em uma sala de bate-papo com várias pessoas, até que alguns indivíduos começaram a elogiar sua aparência. Foi sugerido, então, que ela exibisse seus seios. A menina levantou a blusa e mostrou. A imagem foi capturada e um ano depois iniciaram as chantagens via Facebook.

O chantagista exigia que Amanda se exibisse para ele — caso contrário, iria publicar as fotos. Um ano se passou e ele voltou a incomodá-la (utilizava o nome Tyler Boo). Fez uma conta falsa com seu nome no Facebook e colocou a foto, alvo da chantagem, no perfil. Amanda ficou doente, com ansiedade, depressão, síndrome do pânico. Se envolveu com drogas e álcool. A menina não saía de casa. Foi hostilizada por todos os amigos. Mudou de cidade, de escola.

Amanda, que antes era uma adolescente alegre, que gostava de fazer vídeos cantando, decidiu criar um vídeo em que contava toda sua história. Escrita em 70 cartões que ela exibe para a câmera, um a um. No audiovisual, só aparece sua imagem do nariz para baixo, enquanto ela passa os cartões. A mensagem final diz “eu não tenho ninguém, eu preciso de alguém”.

O vídeo original foi postado no dia 7 de setembro de 2012. O mesmo material foi replicado no dia 11 de outubro do mesmo ano, um dia após sua morte, em outro endereço do youtube e já conta com mais de 19 milhões de acessos. Este vídeo pode ser encontrado em vários endereços do Youtube com traduções para diversos idiomas. Amanda cometeu suicídio por enforcamento no dia 10 de outubro de 2012.

O ciberacontecimento, neste caso, se dá a partir da postagem por Amanda do vídeo no youtube, conforme Henn. Com a morte da menina, a transformação do acontecimento em acontecimento jornalístico foi quase que imediato: a mídia cobriu amplamente o caso, debates sobre todos os temas que cerceiam o assunto (bullying, ciberbullying, adolescência, isolamento, suicídio, drogas e etc) começaram a acontecer por todo o país, surgiram diversas comunidades no Facebook em memória da adolescente e até verbetes na enciclopédia online wikipedia foram criados (Amanda Todd e Suicide of Amanda Todd), além de vigílias que reuniam milhares de pessoas no Canadá (em 19 de outubro de 2012, uma vigília em Toronto reuniu 250 mil pessoas).

O acontecimento

Em seguida, Henn traz a noção de acontecimento antes de embarcar no conceito de ciberacontecimento — centralidade de sua discussão neste trabalho. Para ele, a noção de ciberacontecimento se constitui a partir de uma revisão das teorias que tratam do acontecimento em si e do acontecimento jornalístico em particular.

Ao trazer tensionamentos entre autores que conversam sobre acontecimento, Ronaldo discorre que quanto mais surpreendente se mostrar uma situação, mais informação ela carrega consigo. Ou seja: dado acontecimento é o desencadeamento de algo com um alto índice de taxa informacional.

É nesta lógica que se insere o acontecimento jornalístico — devido à alta taxa de informação. Logo, quanto mais intenso, melhor. Quando mais diferente, mais atraente.

Marcia Benetti, estudiosa reconhecida por pesquisar Análise do Discurso, comenta este parecer em um viés mais funcional: o acontecimento jornalístico como o excepcional em relação ao comum, o desvio em relação à norma.

Abrindo um parênteses: é o humano que morde o cachorro que se torna notícia. E não o contrário.

Ronaldo pontua que as ideias relativas a acontecimento se atravessam. Contudo, ele concebe este conceito como a força propulsora da semiose em que os sentidos encaminham-se para possíveis zonas de acomodação produzidas pelas codificações e enquadramentos do jornalismo. Esse processo instalaria, segundo suas próprias palavras, uma espécie de “hermenêutica jornalística” caracterizada pelas tensões que causa quando é absorvida pelas lógicas jornalísticas. Considerando Charaudeau, Henn observa o acontecimento objetivado no discurso. Ou seja: ele é real quando o nomeados de algo. Ao ser relatado, é construído midiatiamente.

Até então, com estas visões, este era um fluxo linear na transformação do objeto semiótico (acontecimento) em signo (narrativa jornalística) com produção de interpretantes (repercussão, afetação, agendamento). Essa lógica, conforme Ronaldo, se reconfigurou com a internet e os processos de comunicação online.

O ciberacontecimento

Para Henn, essa transformação no fluxo da semiose que se desenha no jornalismo contemporâneo já havia sido percebida por Geane Alzamora, que trabalha com a ideia de polo emissor como sendo o lugar lógico do objeto e do polo receptor como sendo o lugar lógico do interpretante. Pierce, no entanto, considera esta analogia problemática na medida em que a relação entre objeto, signo e interpretante é múltipla e não pode ser reduzida a polos. “E a representação, na verdade, está associada à interpretação: o signo, ao mesmo tempo em que representa um objeto (e só existe por conta desse objeto, por isso a determinação lógica) gera interpretantes, outros signos, vinculados, por mediação do signo, ao objeto semiótico que disparou o processo” (HENN, 2013, p. 5).

Conforme indica o autor, é nesse ambiente de convergência — tomando o conceito de Jenkins — constitutivo de outras possibilidades de narrativas, e consequentemente de semioses, que se delineia a emergência do ciberacontecimento. Porém, Ronaldo sugestiona que existe um senso comum que pensa o acontecimento como algo exterior ao sistema jornalístico que, a partir de narrativas específicas construídas nesse sistema, dá-se a ver publicamente. “Nesse desenho, o acontecimento seria algo do mundo concreto que se força sobre o sistema no sentido de ganhar visibilidade a partir da mediação dos jornalistas. Isso remete a ideia do objeto semiótico como coisa, algo proveniente daquilo que se entende como mundo real” (HENN, 2013, p. 6).

Peirce complementa esta ideia ao considerar o objeto não necessariamente como um referente dotado de concretude: para ele, qualquer situação abstrata, imaginada ou sensória pode se converter em objeto de um signo. E o acontecimento, como aponta Henn, entendido na acepção da singularidade, mais do que algo, é um conjunto de condições iniciais que dispara possíveis processos. “Dessa forma, as semioses que constituem e disputam espaços na semiosfera trazem consigo as múltiplas naturezas, inclusive técnico/midiáticas, que participam dos complexos arranjos das linguagens. As ‘máquinas de sobrevivência’ dos memes operacionalizam estratégias de ação e permanência nas fronteiras da semiosfera e produzem acontecimentos” (HENN, 2013, p. 7). Estes acontecimentos, na visão do professor, se materializam por meio de dinâmicas de semiose e com “potencial produção de crises nas fronteiras semiosféricas: são os ciberacontecimentos” (HENN, 2013, p. 7).

A partir do artigo de Ronaldo, a turma pensou o sujeito dentro de uma esfera comunicativa, que não pode ser minimizado à uma questão privada porque a pessoa, o indivíduo, se configura como uma própria comunidade.

“No momento em que as apropriações de ferramentas, como os sites de redes sociais, produzem essa gigantesca conversação pública, o que cabia no ambiente restrito da comunidade interpretativa dos jornalistas (no sentido de ZELIZER, 2000) passa a ser tencionado por esses novos arranjos comunitários que também incorporam dinâmicas que são da ordem do jornalismo” (HENN, 2013, p. 8).

Singularidade radical

Como você pode observar no material produzido por Ronaldo Henn (a referência está abaixo com as respectivas bibliografias dos autores citados aqui), Fragoso, Recuero e Amaral compreendem a rede social como uma metáfora estrutural na medida em que, “ao se focar determinado grupo em uma rede, analisa-se sua estrutura composta ou por nós ou por conexões. Os nós geralmente correspondem aos atores envolvidos e suas representações enquanto as conexões implicam em interações: algumas construídas pelos atores e outras mantidas pelo sistema” (HENN, 2013, p. 11).

Henn considera o acontecimento como emergido destes espaços, que, por sua natureza, já trazem marcas singulares de identidade na construção dos perfis que despontam em suas respectivas conexões.

Por exemplo: no caso Amanda Todd, as situações que antecedem a postagem do vídeo no Youtube ainda não são o acontecimento em si — embora tenham relação com as consequências. A transformação do acontecimento em acontecimento jornalístico transformou-se com a notabilidade máxima da menina. Logo, a postagem de seu vídeo.

“Crises agudas podem ser implacáveis com sistemas altamente vulneráveis. Mas o parâmetro de permanência, muito forte em sistemas que historicamente consolidam potência organizacional para fazer frente à entropia eminente, entra em ação nos momentos críticos em que o sistema reorganiza-se transformado, mas mantendo alguns núcleos de sua identidade. Pensa-se que o jornalismo, considerando-se a sua história, os fundamentos culturais e sociais que o legitima e sua faceta empresarial arraigada nos poderosos conglomerados de mídia, tem um conjunto de elementos de grande fôlego para transmutar-se nesse processo crítico e continuar sendo jornalismo” (HENN, 2013, p. 13).

O caso Amanda Todd, conforme conclui Ronaldo, não é apenas impactante devido à dor que revela. Ele mostra uma singularidade que concentra de forma densa as tensões semiosféricas da cultura contemporânea no ambiente das redes digitais: o acontecimento em si, em nós e no mundo, o íntimo tornado público e o público, privado.

Referência

HENN, Ronaldo Cesar. Apontamentos sobre o ciberacontecimento: o caso Amanda Tood. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 22., 2013, Salvador. Disponível em: http://compos.org.br/data/biblioteca_2068.pdf.

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Publicação-laboratório da disciplina de Teorias da Comunicação do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos

Letícia Rossa
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Written by Letícia Rossa

Jornalista. Doutoranda em Comunicação. Feminista chata que quer fazer você pensar.