Os desafios do jornalismo na era digital

Francisco Éboli
Das Teorias
Published in
9 min readJun 20, 2016
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O material abaixo faz parte de um trabalho desenvolvido na disciplina de Teorias da Comunicação com o intuito de a apresentar a Linha 2 (Linguagem e Práticas Jornalísticas) do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. O texto foi produzido por Francisco Eboli, Greyce Vargas e Leandro Demori a partir da leitura dos dois primeiros capítulos do livro A explosão do jornalismo — das mídias de massa à massa de mídias, do jornalista e sociólogo Ignacio Ramonet. O espanhol é doutor em Semiologia e História da Cultura pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris — onde foi aluno de Roland Barthes. Também foi diretor de redação e presidente do comitê diretor do jornal Le Monde diplomatique.

O que ocorreu nas últimas duas (talvez três décadas) com o jornalismo foi, como diz Ignácio Ramonet, uma mudança de ecossistema. “O impacto do meteorito internet”, segundo o autor, provocou uma mudança radical em todo o ecossistema midiático, mudando o DNA da informação, mas ainda carecendo de uma transformação no DNA dos jornalistas. Embora esteja correto em suas colocações, é preciso levar em conta que Ramonet é altamente crítico. Isso é estranhamente desagradável quando ele usa termos como “as mentiras e imprecisões das mídias dominantes”. Quando o “peão” é defrontado com isso, tende a se rebelar contra o autor. Quando ele diz que o DNA dos jornalistas precisa mudar, se embasando em “um especialista em novas mídias”, ele esquece que a transformação já começou e trata apenas como algo que precisa acontecer, esquecendo do processo em curso.

É preciso destacar o caráter que Ramonet dá ao conceito de circulação. Um termo que ganhou novos significados com a internet. O ambiente que a internet proporciona muda também a forma como a informação (e a desinfomação) circula. Uma das mais significativas mudanças pelas quais o jornalismo passa está dentro deste conceito. Agora, o processo jornalístico não é mais uma produção fordista, mas um processo “em beta”, de work in progress. O jornalismo sai da ideia de controle e formatação e passa para um ambiente em que webatores ganham espaço no complemento e de modificação (incessante). A circulação leva em conta hoje “o que é mais lido”, o que gera mais cliques. A primeira página (do site, no caso) continua tendo importância, mas ela é mudada também conforme a “dança da audiência”, que é medida ao vivo, ao tempo todo.

Embora as empresas tradicionais que têm o jornalismo como negócio ainda sejam praticamente as mesmas, o desenho econômico do produto teve de ser refeito, redesenhado — e continua sendo reescrito e testado. A audiência dessas empresas continua sendo importante (em termos de número), mas o retorno financeiro já não é mais como antes do meteorito da internet. O papel do jornalismo — seja o feito por empresas tradicionais quanto por grupos independentes — passa pela atuação do webator. Esse cara não se julga inferior ao jornalista profissional, mas não tem a mesma responsabilidade. Ainda que caiba ao profissional verificar, recortar e confirmar uma informação, em razão da demanda da audiência, esses três processos, por vezes, passam batidos. O tempo está profundamente ligado à demanda da audiência. É preciso dar, de qualquer forma, primeiro a notícia e, de preferência de uma forma que faça com que a audiência “compre” outros produtos jornalísticos produzidos e disponíveis na vitrine da primeira página.

Quando Ramonet descreve o webator, o coloca como alguém que escreve, fotografa, filma, comenta e analisa. No entanto, o texto é escrito em um tempo que não leva em conta o conceito de viralização. O webator continua fazendo tudo isso, mas para seus próprios canais (YouTube, Facebook, Snapchat, Instagram, WhatsApp…) para sua própria audiência. Não é uma falha de Ramonet não explicar isso, uma vez que ele prevê o fim rápido do que surge de repente. Tanto que ele pergunta sobre “o fim do Blu-Ray… já?” (afinal, alguém aí teve?). Sem citar Pierre Levy, Ramonet fala sobre a inteligência coletiva que surge das apropriações e usos que os webatores e usuários fazem no espaço da internet. Para ele, “os coletivos de internautas se encontram na vanguarda da inovação” o que obrigará, mais uma vez, as mídias tradicionais reverem suas estratégias.

Neste sentido, o autor vai apontar que “o consumo de informação nos sites de mídias na rede já ultrapassa o da imprensa escrita impressa” e avalia que para as “empresas de imprensa nenhuma estratégia de sobrevivência parece simples”. Ramonet traz então uma série de exemplos daquilo que ele vai chamar de “uma paisagem ‘chernobylizada’” dos jornais impressos no cenário global. Ele ressalta ainda que, para diminuírem seus custos, certos jornais reduziram páginas e alguns, inclusive, eliminaram sua edição de domingo — aqui no Rio Grande do Sul temos os exemplos de Zero Hora e do Correio do Povo que também optaram por seguir este caminho.

Para o espanhol, quando se fala em “enxugar” as redações se fala de um “tratamento menos completo da informação” e a “extinção de programas de gêneros que passam a ser considerados como ‘muito caros’ e ‘não rentáveis’: o jornalismo de investigação e as reportagens locais”. “Nos sites de informações on-line, os ‘jornalistas do papel’ são substituídos por uma nova geração de ‘jornalistas free-lancer de abate’, não menos superexplorados que os da imprensa escrita”. Segundo Ramonet, existe também uma confusão permanente entre comunicação e informação. “É cada vez mais difícil distinguir um comunicador de um jornalista. No entanto, suas funções são muito diferentes: um valoriza, enquanto o outro informa”. Para ele, os cidadãos desconfiam de uma imprensa que pertence a um punhado de oligarcas, que já controlam amplamente o poder econômico e que, frequentemente, são coniventes com os poderes políticos.

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Conforme Ramonet, esse movimento de concentração da imprensa em grandes grupos também representa um ataque ao pluralismo. O autor vai lembrar os grandes grupos midiáticos com ações cotadas na Bolsa de Valores para perguntar de forma provocativa se isso tem algum tipo de influência nos conteúdos. Questão que ele mesmo responde quando diz que “sim, as mídias que pertencem a eles frequentemente seguram informações suscetíveis a prejudicar esses grupos”.

Neste novo contexto, ganha visibilidade o que ele chama de endogamia político-midiática. O espanhol também vai apontar um certo descrédito daqueles jornalistas chamados por ele como “dominantes”, a quem ele vai criticar por ao seu ver viverem nas nuvens e “em estado de cumplicidade permanente com a classe política, ela mesma amplamente deslegitimada”. Diz que nas democracias de opinião estes profissionais formam um “pequeno grupo de jornalistas onipresentes que impõe sua definição da informação-mercadoria a uma profissão cada vez mais fragilizada pelo temor do desemprego”.

O autor aborda também a relação entre o poder financeiro e o poder das mídias e como eles nunca foram tão intimidadores. Fala inclusive que as mídias dominantes colocam atualmente um grave problema para a democracia e afirma que “elas não contribuem mais para ampliar o campo democrático, mas, ao contrário, trabalham para restringi-lo, atacar suas bases, miná-lo”. O tom da cobertura da mídia tradicional em relação ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e da Operação Zelotes (que investiga crimes de sonegação fiscal das principais empresas brasileiras), creio, ilustram bem o quanto a democracia sai perdendo com essa endogamia político-midiática.

O espanhol prossegue afirmando que aos poucos a sociedade vai se dando conta deste novo cenário. Na sua visão, isso cria um estado de insegurança informacional, já que a confiança nas mídias diminui à medida que proliferam informações. Aponta, então, uma espécie de “censura democrática”. Para ele, nas sociedades democráticas as informações se tornaram tão abundantes, tão saturadas de parasitas, que elas nos asfixiam e nos impedem de saber quais “outras informações” nos são ocultadas. Haveria, portanto, uma espécie de “muro da informação” que nos impede de ter acesso à informação.

Em seu olhar, a crise de credibilidade das mídias também está ligada ao jornalismo de especulação, de divertimento e de espetáculo que triunfa em detrimento da exigência de qualidade. No lugar da relevância do conteúdo, passa a valer o número de cliques que o material pode gerar. A encenação da informação, analisa, se sobrepõe à investigação dos fatos. Ramonet também critica o que ele chama de obsessão pela rapidez e pelo imediatismo que conduz as mídias a multiplicarem erros. O autor aponta ainda que a prática da navegação, o acostumar-se às múltiplas tarefas, nos distancia de formas de pensar que exijam reflexão e concentração. “Com seu hipertexto multicolorido e seu infinito abismo de informações fragmentadas, a internet nos incitaria a sobrevoar textos curtos sobre múltiplos temas e nos faria perder a capacidade de ler textos longos e complexos”.

O espanhol vai fazer então um pequeno resgate do papel da mídia como “Quarto Poder” a partir da segunda metade do século 19. Essa condição, explica o autor, se deve ao fato de ela se constituir em um recurso dos cidadãos contra abusos dos poderes tradicionais — Executivo, Legislativo e Judiciário. Num contexto democrático, indica, os jornalistas e as mídias consideram como seu dever denunciar essas violações dos direitos. Porém, ele avalia que nos últimos anos, à medida em que acelerava o processo de globalização neoliberal, o conteúdo deste “Quarto Poder” foi perdendo seus significado. Conforme Ramonet, o verdadeiro poder é, a partir de agora, mantido por um “feixe de grupos econômicos e financeiros planetários e de empresas globais”. O autor conclui dizendo que o “peso desses conglomerados nos negócios do mundo é, às vezes, mais importante que o dos Estados. Eles são os novos mestres do mundo.”

Neste novo cenário, comenta, as empresas midiáticas procuram agrupar em seu interior todas as mídias, e, além disso, também todas as atividades das três grandes esferas: cultura de massa (lógica comercial, objetivos essencialmente mercantis), a comunicação (publicidade, marketing, poder de persuasão) e informação (imprensa escrita, blogs, agencias de noticia, o universo de todos os jornalismos). Esferas que antes eram autônomas agora passam a se constituir em uma única esfera ciclópica, no interior da qual se torna cada vez mais difícil distinguir as atividades provenientes de cada uma delas. A internet é totalizadora. Tudo gravita em torno dela. O que determina o valor de uma notícia passa a ser sua capacidade de gerar cliques e compartilhamentos.

Ao falar da comunicação como matéria prima estratégica, Ramonet destaca que a globalização é também a globalização das mídias de massa, da comunicação e da informação. “De um ponto a outro do planeta os senhores da das redes são os mesmos”. Preocupados com a manutenção desse gigantismo e com a conquista de novos mercados, critica, os grupos midiáticos abdicam da condição de um quarto poder em defesa da democracia. “Passam a integrar o os outros poderes dominantes: o político, econômico e financeiro”. Novamente podemos voltar ao caso da cobertura da imprensa em relação ao impeachment e a Operação Zelotes.

Ramonet propõe então a criação de um Quinto Poder, cuja função seria denunciar o superpoder de alguns grandes grupos midiáticos que, em certas circunstâncias, deixaram de defender os cidadão e passaram a agir contra eles. O espanhol vai dizer ainda que esses grandes grupos não se assumem somente como poder midiático, tornam-se, sobretudo, “os aparelhos ideológicos da globalização. Eles não se comportam mais como mídias, mas como verdadeiros partidos políticos. Não reivindicam o direito de crítica, se constituem em uma oposição ideológica”.

O francês vai reivindicar que as grandes mídias permitam aos jornalistas agir em função de sua consciência e não em função dos interesses dos grupos, das empresas e dos patrões que a empregam. Acredito que este não seria o melhor caminho, posto que os jornalistas vão acabar por reproduzir seus valores sociais, que estão em consonância com os valores e convenções sociais hegemônicas e vão ao encontro da visão de mundo e dos interesses dos grupos midiáticos. Para usar uma expressão do próprio Ramonet, creio que os próprios jornalistas têm dificuldade em separar liberdade de expressão e liberdade de empresa.

O autor vai afirmar que, em razão da sua superabundância, “a informação encontra-se contaminada, envenenada por toda a espécie de mentira, poluída pelos rumores, pelas deformações, pelas distorções e manipulações”. A informação, indica Ramonet, seria o quinto elemento do mundo globalizado (ao lado da água, terra, fogo e do ar). Afirma que os cidadãos reclamam por uma “ecologia da informação”. “Menos informação, mas melhor”. Traça um paralelo com os alimentos orgânicos e diz que “necessitamos obter uma espécie de informação orgânica. Um jornal com selo ‘garantido sem mentiras’ ou um site com a marca ‘sem rumores’”.

Por fim, o espanhol vai defender que “a liberdade de empresa não pode, em nenhum caso, prevalecer sobre o direito dos cidadãos a uma informação rigorosa e verificada nem servir de pretexto para a difusão de falsas notícias, de difamações ou campanhas de manipulação de massa”. Para concluir, afirma que “não devemos esquecer nunca que as mídias continuam sendo nos estados de direito o único poder sem contrapoder, o que cria um perigo pernicioso para a democracia”.

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