Uma década de artilharia em alto nível: Robert Lewandowski
Todos os anos, a FIFA entrega um prêmio ao Melhor Jogador do Mundo, eleito por um grupo seleto de votantes. Repleta de polêmica, a nomeação sempre vira alvo de acalorados debates nas redes sociais; fã clubes de cada jogador brotam pelos cantos, mostrando números e construindo narrativas para defender seu atleta favorito. Só que mais do que o significado do prêmio, em si, o interessante é perceber como essas eleições ajudam a nortear a opinião pública e a cabeça de fãs casuais de futebol.
Se alguém quisesse saber sobre a história do futebol nos anos 2010, não haveria melhor forma de começar do que contando sobre Messi e Cristiano Ronaldo. Eles dominaram as premiações individuais, quebraram recordes todos os anos, fizeram parte de times icônicos e vencedores, e foram as caras mais famosas do esporte bretão ao longo da década.
Ano após ano, jogadores diversos se revezaram na tentativa de alcançar os dois craques, mas nenhum conseguiu manter o padrão extraordinário por múltiplas temporadas. Sneijder (2010), Iniesta (2010), Ribéry (2013), Neymar (2015), Salah (2018), Van Dijk (2019) foram alguns dos grandes nomes que ficaram sem o reconhecimento esperado por conta dos dois. Porém, boa parte desses atletas teve seu ápice em uma temporada e oscilou na sequência, passando de “injustiçado” para “uma ótima narrativa que se perdeu pelo caminho”. Manter esse nível de performance com essa longevidade é algo que não se via no esporte há décadas e os dois se tornaram personagens tão grandes que é quase impossível não falar deles. No entanto, se olharmos um patamar abaixo do estabelecido pela dupla, há um atacante que se destaca em meio aos grandes nomes desses 10 anos: Robert Lewandowski. O polonês, que passou a década entre Borussia Dortmund e Bayern Munich, é o mais constante goleador entre tantos nomes que brilharam na elite do futebol mundial e alguém que todo fã de futebol deveria acompanhar de perto.
Destaque entre os melhores
Entre 2010/11 e a atual temporada — 2019/2020 — , nenhum camisa 9 do mundo foi tão letal quanto o craque do Bayern.
No comparativo com os principais goleadores da década, Lewandowski fica quase 40 gols a frente da dupla uruguaia Cavani e Suárez, e incríveis 90 gols a frente de Aubameyang — outro jogador, assim como Lewa, que passou boa parte da década atuando na Bundesliga.
Quando observamos as melhores temporadas, Suárez emerge como a “melhor temporada individual”, em 2015/16, quando recebeu a chuteira de ouro e anotou 54 tentos; Cavani e Ibrahimovic, companheiros por muitos anos no PSG, tiveram uma temporada de 48 gols cada — números que, até o momento, o polonês não registrou em qualquer temporada. Entretanto, se não é o detentor dos melhores números isolados, ninguém chega perto quando olhamos para a quantidade de temporadas superando a marca de 40 gols: somados, 7 dos maiores goleadores do futebol mundial registram 5 temporadas com pelo menos 40 bolas na rede; Lewa, sozinho, está em sua quinta consecutiva — e, curiosamente, sua melhor temporada individual, com 46 gols (e contando). Apenas para efeito de comparação histórica, nomes como Ronaldo ‘Fenômeno’ (47 gols em 96/97) e Romário (40+ gols em 86, 99, 2000 e 2001) não tiveram tantas temporadas com mais de 40 gols como o provável chuteira de ouro dessa temporada.
Numa perspectiva de média de gols, o artilheiro do Bayern também se destaca: apenas Zlatan possui uma média maior (0,77 x 0,73), mas com a ressalva de que o sueco esteve por 2 temporadas nos EUA — sem a passagem pela Major League Soccer, a média cai para 0,74, praticamente idêntica à do polonês. E os números ficam ainda mais impressionantes se olharmos apenas para a segunda metade da década: aumento de cerca de 24% de gol por jogo para o craque — salto que só não supera os quase 28% de Aubameyang. Coincidência ou não, Lewandowski e o gabonês são os mais jovens da lista.
É importante ressalvar as diferenças entre as ligas — variáveis, como o nível médio dos adversários, podem causar imperfeições na análise.
Referendando os números
O que está por trás dos tantos gols que explica o resultado atual? Alguns outros dados ajudam a entender o desempenho fenomenal de Lewandowski:
Mapa de Calor: movimentação e ocupação de espaços
Observando os mapas de calor — um indicador de movimentação e espaços ocupados pelo atleta durante os jogos , disponíveis no SofaScore— na atual temporada, notamos que nenhum dos nomes analisados, se aproxima do polonês em presença; Benzema, um destaque em movimentação, tem uma função clara como facilitador no Real Madrid, talento que ele aprimorou como poucos durante a era Cristiano Ronaldo. Aubameyang, outro artilheiro que trabalha bastante longe do gol, tira proveito de sua velocidade e da presença de Lacazette, muitas vezes o pivô do time, para encontrar espaços para finalizar. Suárez é outro que assume um protagonismo maior fora da área, tirando proveito de seu entrosamento com Messi, que compensa qualquer seca de gols que o uruguaio eventualmente passe.
Os homens que mais operam na pequena área atualmente, ‘Kun’ Aguero e Ibrahimovic, o fazem por razões distintas: o argentino é a ponta final de um modelo de jogo complexo e bem azeitado no Manchester City, de Pep Guardiola, que permite ao craque que 86% de suas finalizações sejam realizadas dentro da área, sendo 15% delas dentro da pequena área nessa temporada; mesmo valor que o falastrão sueco que assumiu boa parte do fardo ofensivo do disfuncional Milan — o que faz dele o jogador analisado com a mais balanceada distribuição de finalizações. Apenas Cavani, reserva na maior parte da temporada, tem proporcionalmente mais finalizações na pequena área do que dois (mais de 30%!), valor que se repete com o agora titular do time parisiense, Mauro Icardi, o que dá a ideia realista do domínio do campeão francês sobre seus adversários.
E Lewandowski nisso tudo? Tem basicamente a mesma distribuição de finalizações dentro da área que Aguero (85%) e compensa a menor porcentagem na pequena área (10%) com o maior volume de chutes (13 x 11) — o que, considerando a média de finalizações por jogo de cada um, representa basicamente o mesmo volume (0,49 chute na pequena área para Aguero, 0,45 para Lewandowski). Além disso, como mostra claramente o campinho, Lewa tem sido uma presença marcante em basicamente todo o campo de ataque do Bayern, sinal claro de evolução em comparação às últimas temporadas — em especial a última, quando era comandado pelo criticado Niko Kovac.
Finalizações e gols esperados: a eficiência dos atacantes
Mas como ter certeza de que o que vemos a olho nu é confirmado pelas estatísticas? Bom, um caminho cada vez mais adotado para entender a eficiência dos atacantes é o que chamamos de ‘expected goals’ ou xG, um indicador que se propõe a mensurar a chance de conversão de uma finalização considerando variáveis como condições do chute, posicionamento do atacante, distância para o gol, entre outros — o MW Futebol deu uma explicação mais robusta e elucidativa no texto de Pedro Galante. A métrica é imperfeita, claro, e há quem considere-a pretensiosa demais, porém é um caminho novo que surgiu para analisar detalhes preciosos do jogo.
Assim sendo, jogadores diferentes, atuando por times distintos, contra adversários diversos, em condições desiguais, possuem xG próprios. E sua eficiência poderá ser avaliada pela produção (quantos gols, de fato, marcou) em comparação ao que era esperado marcar. E podemos ver um pouco dessa performance no comparativo abaixo:
No eixo X, vemos a quantidade de xG para cada jogador; o eixo Y indica os gols marcados; por fim, o tamanho do círculo representa o volume de finalizações por 90 minutos de cada um dos atletas. Como se nota claramente, Lewandowski se descola do pelotão de principais artilheiros da década com uma produção assustadora. E entender esse isolamento passa por olhar dois indicadores:
O primeiro é o que chamaremos de “produção” e é como um paralelo do chamado “plus/minus” em ligas norte-americanas. Ele considera a diferença entre os gols marcados e os gols esperados (xG), o que confirma a visão do gráfico anterior, de que todos os atacantes analisados tiveram uma performance acima do esperado. O que mais impressiona nos números do polonês é o volume: nenhum outro atleta chegou próximo aos 95 gols, marca que Lewandowski tinha como esperada para o período. Não satisfeito, foi quem mais produziu acima do projetado para o recorte de tempo analisado, conforme mostra gráfico abaixo:
Outro indicador que confirma a eficiência do camisa 9 do campeão alemão é a “qualidade das chances”, uma métrica que consiste em dividir o número de finalizações pelo xG, a fim de compreender quão boas são as conversões do atleta. Nesse recorte, Lewa fica um pouco atrás apenas de Aubameyang, mas com quase 50% a mais de volume:
A tabela indica um nível elite de eficiência para um volume ofensivo que nenhum outro atacante sequer chega perto. Aliás, num recorte apenas dos últimos 3 anos (período em que a informação de xG está disponível no Football Reference), o polonês tem números melhores que Cristiano Ronaldo e é quem chega mais próximo de Messi em produção de gols.
Lewandowski não é a melhor história do futebol atual, nem o mais carismático dos jogadores. Seus números são tão constantes que passam despercebidos pelos olhares menos fanáticos. Seu futebol é mais eficiente que plástico e seu time não é tão popular quanto outros gigantes da Europa. Talvez lhe falte uma grande conquista além fronteiras para que o considerem com mais carinho para premiações individuais. Pouco importa. Se um dia te perguntarem sobre a história do futebol nessa década, não esqueça de mencionar um certo artilheiro.