“Contando Feminicídio”: um glossário feminista para ativistas de dados

Alessandra Jungs de Almeida
Data + Feminism Lab, MIT
6 min readNov 23, 2022

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Em novembro de 2022 foi aberto para comentários da comunidade e academia o livro de Catherine D’Ignazio: Counting Feminicide: Data Feminism in Action (em português, Contando Feminicídio: Feminismo de Dados em Ação). O livro, que será publicado em breve pela editora MIT Press, explora o esforço e trabalho — por vezes invisível, como coloca D’Ignazio — de um diverso grupo de ativistas em desafiar a ciência de dados tradicional por meio da coleta de dados de feminicídio. Abordando e desafiando o poder patriarcal atrás da ciência de dados tradicional, Catherine D’Ignazio demonstra como o trabalho das ativistas de dados pode ser usado para justiça social e, especialmente, como os dados de feminicídio podem ser um meio para reivindicação de justiça de gênero.

É nesse livro que, no capítulo 8 — A Toolkit for Counterdata Science (em português, Um Kit de Ferramentas para a Ciência de Contra-dados), Catherine desenvolve um glossário de termos que podem ser úteis para grupos ativistas, jornalistas, acadêmicas, entre outros públicos, que estejam dispostos a pensar e trabalhar com dados a partir de uma perspectiva de justiça social.

Fonte da imagem: DALL-E 2, OpenAI, gerada por meio de Inteligência Artificial.

Os conceitos abaixo são a tradução para o português do glossário do capítulo 8 de “Contando Feminicídio”. Essa tradução é feita no âmbito do Data + Feminism Lab do MIT (em português, Laboratório de Dados + Feminismo), também liderado pela autora do livro. A tradução desses conceitos é um dos muitos movimentos teóricos, participatórios e tecnológicos que o projeto realiza para apoiar e fortalecer as práticas de ativistas feministas em diversas regiões do mundo, incluindo países de língua portuguesa, como o Brasil.

Glossário do capítulo 8 de “Contando Feminicídio: Feminismo de Dados em Ação”, livro de Catherine D’Ignazio:

Co-libertação — Este é o objetivo quando trabalhamos em prol da justiça social; que nós, juntos e juntas, possamos nos libertar dos múltiplos fardos — materiais, psíquicos, espirituais e intergeracionais — da opressão sistêmica. Há uma citação bastante conhecida de ativistas aborígenes em Queensland, Austrália, que representa essa ideia: “Se você veio aqui para me ajudar, está perdendo seu tempo, mas se veio porque sua libertação está ligada à minha, então vamos trabalhar juntos.”

Contra-dados — Dados produzidos por grupos da sociedade civil ou indivíduos, a fim de contrariar os dados que faltam ou contestar os dados oficiais existentes. Ações de contra-dados podem ocorrer por meio da contestação de definições oficiais e de práticas oficiais que medem e que analisam dados. Produzir contra-dados não é apenas sobre preencher as lacunas dos dados oficiais, mas também diz respeito a desafiar o viés e a inação do estado, podendo chamar a atenção da mídia e do público para promover mudanças políticas e para ajudar na recuperação de comunidades violentadas.

Ciência de contra-dados — É um desafio às práticas de dados (como mensurar, coletar, analisar, publicar) das principais “instituições de contagem” de dados, como governos e corporações. A ciência de contra-dados é explícita, sistematizada, rigorosa e geralmente coletiva. Ela apropria-se das práticas convencionais de ciência de dados e as utiliza para produzir conhecimento sobre um fenômeno fora das instituições oficiais de contagem de dados. Ela não está apenas contrariando os dados oficiais (ou a falta deles), mas também contrariando a ciência de dados hegemônica, adotando uma visão alternativa do que é a ciência de dados, quem a pratica e a quem ela beneficia. A ciência de contra-dados é uma prática de cidadania — uma maneira de usar dados e mensurações para possibilitar a dissidência democrática sobre dados e mensurações.

Ativismo de dados — É o uso de dados e programas (usualmente definidos como softwares) que possibilitam a ação coletiva e o exercício de agência política. Produzir contra-dados e engajar-se na ciência de contra-dados são formas específicas — mas não as únicas — de engajar-se no ativismo de dados.

Epistemologias de dados — São teorias e abordagens para saber coisas sobre o mundo usando dados. As epistemologias de dados convencionais são fortemente positivistas — buscam usar dados para encontrar verdades universais sobre os contextos considerados. Muitos estudiosos e ativistas destacam como as epistemologias de dados dominantes replicam modos violentos, extrativistas e coloniais de geração de conhecimento. Epistemologias de dados alternativas emergentes incluem o feminismo de dados, recusa feminista de dados, ciência de dados radical, IA decolonial, soberania de dados indígenas e dados queer.

Dados discordantes — É uma ideia de Helena Suárez Val que descreve o fato de que dados oficiais e contra-dados muitas vezes não coincidem deliberadamente — eles são discordantes porque usam definições, mensurações e estratégias de classificação diferentes.

Ciência de dados hegemônica — É a ciência de dados dominante que trabalha para concentrar riqueza e poder, acelerar o capitalismo racial, perpetuar o patriarcado, sustentar o colonialismo e agravar os excessos ambientais e as desigualdades sociais.

Dados ausentes — São os dados que são negligenciados pelas instituições, apesar das demandas políticas de que tais dados sejam coletados e disponibilizados. Dados ausentes podem incluir dados totalmente ausentes, mas também dados esparsos, negligenciados, mal coletados e mal mantidos, de difícil acesso, atualizados com pouca frequência, contestados e/ou subnotificados.

Poder — É a configuração atual de privilégio e opressão estrutural, na qual alguns grupos experimentam vantagens não merecidas — porque vários sistemas foram projetados por pessoas como eles e funcionam para pessoas como eles — e outros grupos experimentam desvantagens sistemáticas e violentas — porque esses mesmos sistemas não foram projetados por eles ou com pessoas como eles em mente. Manifestações específicas de privilégio e opressão incluem, mas não estão limitadas a: cisheteropatriarcado, genocídio colonial, supremacia branca, capitalismo racial e capacitismo. A ciência de dados hegemônica reforça o poder e o status quo desigual que esse poder produz. A ciência de contra-dados procura desafiá-la.

Dados oficiais — São dados produzidos pelo estado, órgãos governamentais internacionais e/ou outras instituições tradicionais, como grandes corporações ou associações profissionais.

Triangulação — É a ação de usar múltiplas fontes de informação sobre o mesmo evento ou fenômeno para cruzar referências e verificar detalhes. A triangulação geralmente é necessária quando os dados oficiais são suspeitos, esparsos, ou quando não há uma única fonte confiável de informações no ecossistema de fontes analisadas.

Como Catherine D’Ignazio coloca, as ferramentas abordadas ao longo do capítulo, entre elas o glossário, são apenas um primeiro passo de exploração das lições aprendidas com ativistas de dados. São também uma demonstração de como essas informações podem ser úteis para quem quiser ou estiver usando dados pela justiça social.

Para aquelas e aqueles que se aproximam agora do ativismo de dados, eu lembro a releitura que Catherine D’Ignazio e Lauren Klein fazem, no livro Data Feminism, da expressão “o feminismo é para todo mundo” de bell hooks. Elas colocam: “o feminismo de dados é para todo mundo” — portanto não é feito somente por e para mulheres e nem é somente sobre gênero, mas envolve práticas e um olhar interseccional para o que se está observando e desde onde se está observando. A isso, eu somo a própria percepção das autoras: o ativismo de dados também não é feito somente por cientistas ou especialistas na ciência de dados. Conforme Klein e D’Ignazio, no feminismo de dados o que é necessário é o compromisso em coletar, organizar e analisar sistematicamente informações — sejam números, palavras ou histórias. Com isso em mente, se o feminismo de dados é para todo mundo, ele também pode ser feito por artistas, movimentos sociais, organizações comunitárias, organizações não governamentais e assim por diante.

Como diria bell hooks, desde sua pedagogia feminista e radical, compartilhar pensamentos e práticas feministas é o que sustenta o movimento feminista, portanto divulgar “Counting Feminicide” e seu glossário é uma ação coerente.

Referências

D’Ignazio, Catherine. (2022). Chapter 8 — A Toolkit for Counterdata Science. In Counting Feminicide: Data Feminism in Action. https://mitpressonpubpub.mitpress.mit.edu/pub/cf-chap8

D’Ignazio, Catherine & Klein, Lauren. (2020). Data Feminism. MIT Press. https://data-feminism.mitpress.mit.edu/

hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rosa dos Tempos, 2018.

Texto e tradução do glossário: Alessandra Jungs de Almeida, doutoranda em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e estudante visitante no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Assistente de pesquisa no Data + Feminism Lab, MIT.

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Alessandra Jungs de Almeida
Data + Feminism Lab, MIT

PhD candidate in IR @UFSC • Visiting scholar @MIT • Research Affiliate in the Data + Feminism Lab, MIT