Entenda como o mercado de dados vai desabar se as empresas seguirem o Elon Musk

Gabriel Lages
Data Hackers
Published in
12 min readJun 4, 2022

O que vai acontecer no mercado de dados se as empresas voltarem ao 100% presencial?

Na última semana, o assunto mais polêmico da internet foram os emails que vazaram do Elon Musk, nos quais ele deu um ultimato aos executivos da Tesla em um tom de “retorne ao escritório ou saia da empresa”. Diante dessa polêmica nós da comunidade Data Hackers resolvemos tentar entender o que aconteceria na área de dados caso as empresas adotassem a mesma medida radical do Elon Musk.

Para tentar entender melhor esse cenário decidimos entrar a fundo nos dados da pesquisa State of Data Brazil, a maior e mais completa pesquisa sobre o mercado brasileiro de dados desenvolvida pela comunidade Data Hackers em parceria com a Bain & Company. (Os dados anonimizados foram disponibilizados abertamente para toda a comunidade e o dataset pode ser acessado nesse link)

É importante lembrar que essa análise não passa de um conjunto de suposições, estou compartilhando um pouco do que eu acredito mas vivemos em um momento de incertezas, ninguém sabe exatamente como as empresas vão lidar com essa questão no futuro e é exatamente por isso que esse assunto tem gerado tanta polêmica.

Contexto: Qual o tamanho da área de trabalho em dados no Brasil atualmente?

O Brasil conta hoje com mais de 50 mil profissionais de dados, segundo dados da comunidade Data Hackers e do Linkedin, para dar uma dimensão maior dos números vou entrar em mais detalhes.

Com uma pesquisa no Linkedin descobri que:

  • Existem cerca de 6,2 mil profissionais no Brasil que atuam hoje em 2022 com o cargo de Cientista de dados
  • 6,6 mil com o cargo de engenheiro de dados (crescendo 57% no último ano)
  • 12,2 mil com o cargo de analista de dados

Além desses cargos, existem novas profissões como Analytics Engineers, Machine Learning Engineers, analistas de Business Intelligence, especialistas em AI, MLOps, Business Analysts, analistas de People Analytics, estatísticos entre muitos outros. Neste caso estou falando só em posições que estão diretamente ligadas a área de dados, mas atualmente com a evolução da maturidade analítica das empresas é cada vez mais comum surgirem papéis fortemente ligados à dados dentro de áreas específicas dos negócios como profissionais de marketing por dados, data product managers entre outros.

Os dados da pesquisa e as análises feitas nesse post tem o foco justamente nesses profissionais que atuam no mercado de dados do Brasil.

The Great Resignation: as pessoas estão trocando de emprego constantemente e na área de dados não tem sido diferente

Um fenômeno recente que tem chamado a atenção de empresas de todo mundo é o chamado “The Great Resignation”. Em 2021, de acordo com o Bureau of Labor Statistics dos EUA, mais de 47 milhões de americanos deixaram seus empregos voluntariamente — uma saída em massa sem precedentes da força de trabalho, estimulada pelo Covid-19, que numa tradução livre seria algo como “A Grande Demissão”.

Fonte: Statista (https://www.weforum.org/agenda/2022/01/the-great-resignation-in-numbers-record/)
Fonte: Statista (https://www.weforum.org/agenda/2022/01/the-great-resignation-in-numbers-record/)

Esse fenômeno não se refere à área de dados especificamente, mas será que o nosso mercado passa por algo parecido? Para tentar entender recorremos aos dados da pesquisa, mais especificamente à uma pergunta que questionava se a pessoa havia participado de entrevistas de emprego nos últimos 6 meses.

Gráfico criado com base nos dados da pesquisa State of Data Brazil (https://www.stateofdata.com.br/)

Segundo os dados da pesquisa, no segundo semestre de 2021, 2 a cada 3 profissionais de dados participaram de entrevistas de emprego. Sendo que 28,7% dos respondentes conseguiram efetivamente mudar de emprego, os outros 32,6% não conseguiram passar ou desistiram durante o processo por algum motivo.

A minha opinião pessoal é que esse número é incrivelmente alto, estamos falando que pelo menos 1 a cada 4 pessoas na área de dados efetivamente mudou de emprego nos 6 meses anteriores à pesquisa, e se por um lado podemos pensar que as pessoas estão conseguindo encontrar novas oportunidades e tendo uma ascensão mais rápida na carreira, por outro lado se isso se tornar uma prática cada vez mais comum o turnover nas empresas certamente vai prejudicar o impacto das entregas de dados para os negócios.

Diante desse primeiro fato minha conclusão é a seguinte:

As pessoas já estão mudando de emprego naturalmente, então é provável que qualquer decisão que gere grande incômodo ou insatisfação nelas tenha uma tendência a acelerar esse processo, sendo assim é importante que as empresas estejam preparadas para isso antes de seguir os passos do Tio Elon Musk.

Os profissionais de dados preferem o modelo remoto, certo? Errado e eu posso provar

As redes sociais estão aí para provar que vivemos numa grande bolha. Existe uma tendência muito forte de nos conectarmos à pessoas que se unem por vivências e interesses semelhantes e acabamos por excluir do nosso radar a participação de quem vive em contextos muito distintos dos nossos. Vou mostrar alguns dados para exemplificar:

Estamos em 2022, todo mundo tem acesso à internet, certo?

Apesar de acreditarmos que todo o país tem acesso à internet, um estudo da PwC mostrou que cerca de 71% da população brasileira com mais de 16 anos não consegue usar a internet todos os dias e mais de 33 milhões não têm acesso à internet. Fonte:(https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2022/03/21/mais-de-33-milhoes-de-brasileiros-nao-tem-acesso-a-internet-diz-pesquisa.ghtml)

Desde o início da pandemia, todo mundo passou a trabalhar em home-office, certo?

Apesar de acharmos que todo mundo no Brasil hoje trabalha de forma remota, segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), a modalidade a distância foi adotada por cerca de 10% dos trabalhadores do País — sendo que a concentração foi forte nas regiões mais ricas e urbanizadas, como sul e sudeste. Fonte: (https://mercadoeconsumo.com.br/2022/01/02/no-brasil-trabalho-remoto-foi-realidade-para-poucos-e-concentrado-em-regioes-ricas-e-urbanizadas/)

Quando entramos mais à fundo na área de dados estamos falando de uma bolha ainda mais segmentada, afinal, a grande maioria dos profissionais têm curso superior completo e um dos pré-requisitos para responder à pesquisa era ter acesso à internet, mas ainda assim os dados mostram cenários semelhantes.

Gráfico criado com base nos dados da pesquisa State of Data Brazil (https://www.stateofdata.com.br/)

O volume de pessoas que vivem no sul e sudeste que estão atuando de forma 100% presencial é consideravelmente menor do que em outras regiões do Brasil.

Mas para entender o impacto de decisões semelhantes à do Elon Musk na área, o mais importante é tentarmos entender e dar foco à preferência das pessoas, por isso decidi explorar a pergunta sobre o modelo preferido de trabalho dos profissionais de dados.

Gráfico criado com base nos dados da pesquisa State of Data Brazil (https://www.stateofdata.com.br/)

Esse foi um dos números que mais me surpreendeu na pesquisa. Ao contrário do senso comum (da nossa bolha), à grande maioria dos respondentes da pesquisa disse que o modelo preferido de trabalho é o modelo híbrido flexível (onde o colaborador tem liberdade para decidir quando ir ao escritório), à proporção de pessoas que prefere esse modelo chega à ser quase o dobro da proporção de pessoas que preferem o modelo 100% remoto (58,6% x 31,1% respectivamente).

Outro número que chamou atenção (mas não me surpreendeu) é que apenas 1,14% dos profissionais de dados afirmou preferir o modelo 100% presencial.

Mas convenhamos que o fato de uma pessoa preferir o modelo 100% remoto não quer dizer que ela não vá aceitar outros modelos de trabalho, afinal, a maioria das pessoas ainda depende de um emprego para viver (tirando os herdeiros e aqueles que têm aposentadoria integral). Sendo assim resolvi ir mais a fundo em outra pergunta, para entender o que a pessoa faria caso a empresa voltasse ao modelo 100% presencial de forma forçada como o exemplo do Elon Musk.

Gráfico criado com base nos dados da pesquisa State of Data Brazil (https://www.stateofdata.com.br/)

Bom, as respostas a essa pergunta falam por si só. Pra mim já está bem evidente que caso uma empresa tome a decisão de forçar o modelo 100% presencial ela vai precisar lidar com o fato de que a maioria dos profissionais de dados vai procurar um outro emprego, resta saber se elas vão achar um.

Fator preocupante: Futuro incerto na economia e a “água batendo na bunda” das startups

2022 tem sido um ano de incertezas no aspecto macroeconômico. Inflação alta, taxa de juros elevada, investidores realizando uma fuga em massa da bolsa de valores, desvalorização das empresas de tecnologia. Todos esses fatores têm se tornado uma ameaça muito grande para as startups e empresas que lidam com tecnologias mais inovadoras.

A verdade é que o aumento do custo de capital se tornou uma barreira para empresas que não são “lucrativas” e buscam um crescimento acelerado. A estratégia mais comum para Startups e empresas de tecnologia é a de levantar um grande volume de capital para investir na empresa, permitindo que essa empresa cresça mesmo sem apresentar resultados positivos, numa expectativa de no futuro dominar um mercado relevante e gerar lucros exorbitantes. O problema é que na falta de capital e incertezas do mercado está cada vez mais difícil levantar capital, o que tem levado a uma consequente desvalorização dessas empresas e para algumas delas se tornado uma bola de neve (a empresa precisa de dinheiro mas vale cada vez menos).

Diante desse cenário muitas empresas estão optando por realizar rodadas de demissão em massa (layoffs) como foi o caso de alguns gigantes da tecnologia como a Klarna, Netflix, Bitso e até mesmo empresas brasileiras como VTEX, Quinto Andar e SumUp.

Existe inclusive uma lista que agrega as ondas de demissão em massa em empresas de tecnologia ao redor do mundo que pode ser acessada no site https://layoffs.fyi/

Ainda sobre esse tema, a Y Combinator (YC) uma das maiores aceleradoras de negócios do mundo enviou um email para as empresas em seu portfólio com recomendações “radicais” para ajudar as startups a sobreviver durante esse período de instabilidade econômica (https://analyticsindiamag.com/ycombinator-warns-startups-to-gear-up-for-turbulent-times/)

Entre as recomendações, está a de que ninguém pode prever o que virá pela frente e que o mais seguro a se fazer no momento é se preparar para o pior, usando os recursos financeiros com muita responsabilidade e cortando custos o mais rápido possível.

Para entender como esse cenário está afetando o mercado de dados e tecnologia até o atual momento que escrevo esse post (04/06/2022), analisei pessoalmente mais de 2.700 demissões divulgadas pela mídia e agregadas no site https://layoffs.fyi/.

Essas foram algumas observações:

  • Entre os 2.700 desligamentos que analisei encontrei apenas 3,4% de pessoas de dados (Data Analysts, Data Engineers, Analytics, Machine Learning etc)
  • Encontrei apenas 7% de desligamentos relacionados à pessoas que atuam na área de desenvolvimento de software

Apesar dessa não ser à lista real e oficial das empresas, pois a maioria dessas listas foi organizada por funcionários das empresas e muitas pessoas podem ter optado por não incluir seu nome nas listas, acredito que seja uma aproximação razoável da realidade ou pelo menos represente as pessoas que estão com mais dificuldades de se recolocar (os outros talvez nem precisaram entrar na lista).

Sendo assim, diante dos números não me parece que as áreas de tecnologia e dados foram as mais afetadas nesse primeiro momento, na gigante de tecnologia Klarna, que tem mais de 2mil profissionais de tecnologia e dados, e que demitiu 10% de seus funcionários (na lista tinham 548 nomes). Cerca de 15% (83 pessoas) eram de tecnologia e dados.

Fonte: Linkedin (https://www.linkedin.com/company/klarna/people/)

Mas como a própria Y Combinator disse, as empresas provavelmente estão se preparando para o pior e é impossível garantir que o mercado de tecnologia e dados não será fortemente afetado por novas ondas de demissão.

Além disso, não se tratam apenas de demissões, muitas gigantes da tecnologia estão congelando novas vagas (o famoso hiring freeze), repensando posições, cancelando ofertas já enviadas para os candidatos e mudando políticas de expatriação e concessão de visto de trabalho.

Todos esses fatores somados, trazem muita incerteza para o mercado e certamente já implicam em uma desaceleração das novas contratações e oportunidades.

Diante desse cenário uma fuga em massa de empresas que optarem por seguir os mesmos direcionamentos do Elon Musk se torna mais improvável, afinal, as pessoas só vão mudar de emprego se realmente existirem outras oportunidades de trabalho.

Muitas empresas aderiram ao remoto e tiveram vantagens nisso, fica difícil acreditar que todas vão voltar ao 100% presencial

Caso a grande maioria das empresas optasse por uma volta ao modelo 100% presencial, este seria um cenário que reduziria a chance de uma provável saída em massa de pessoas, mas a realidade tem sido oposta, tanto por gigantes globais quanto por empresas brasileiras.

Algumas empresas já decidiram que vão adotar o modelo 100% remoto uma vez que ele reduz custos e facilita os processos de contratação de talentos, esse cenário é bem comum em empresas de tecnologia e startups, mas o que chama mais atenção é que até empresas tradicionais como Petrobras, Banco do Brasil, Caixa etc estão buscando formas de possibilitar o trabalho remoto ou híbrido, o que aumentaria ainda mais o volume de oportunidades remotas.

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/05/maiores-empregadores-mantem-equipes-em-home-office-e-trabalho-hibrido.shtml

Até mesmo a Vale adotou o modelo remoto para atividades administrativas de forma permanente, permitindo que milhares de colaboradores trabalhem de casa e reduzindo consideravelmente os custos com sedes e escritórios administrativos.

http://www.vale.com/brasil/PT/aboutvale/news/Paginas/vale-adota-de-forma-permanente-novo-modelo-de-trabalho-mais-flexivel-seguro-e-colaborativo.aspx

Outro ponto importante é que é cada vez maior o volume de empresas adotando a chamada “transformação digital” e implantando novos processos tecnológicos, o que tende a abrir cada vez mais oportunidades para que profissionais de dados e tecnologia atuem nessas empresas e não só em startups ou big techs.

Diante de todos esses casos é improvável que todo o mercado retorne ao modelo 100% presencial e tudo indica que o mercado sempre contará com um certo número de opções para quem preferir trabalhar de forma remota, principalmente na área de tecnologia e dados.

Ponto importante: O caso da Tesla é muito específico, se sua empresa não é a Tesla tome muito cuidado

Apesar de todos esses exemplos que dei acima, o caso da Tesla é muito específico. Ela é uma empresa muito revolucionária em seu mercado, lida com tecnologia de ponta e tem um produto que atrai interesse constante da mídia.

É provável que o principal motivo que levou várias pessoas a trabalhar lá foi pelo sonho de fazer parte de uma revolução no mercado automotivo. Assim como o mercado vê na Tesla um potencial enorme o que reflete seu altíssimo valor de mercado acredito que quem trabalha lá também vê ela com um alto potencial de carreira.

Valor de mercado da Tesla comparado aos seus principais concorrentes em outubro de 2021. Fonte: https://changediscussion.com/is-tesla-market-cap-too-high/

Diante disso acho difícil acreditar que um funcionário da Tesla que esteja chateado com a decisão de voltar ao trabalho presencial vai simplesmente abandonar tudo e procurar emprego na Volkswagen por exemplo, existem muitos outros fatores que pesam nessa decisão. Isso pode até acontecer em alguns casos, mas será que vai chegar a afetar a operação deles?

O futuro dirá…

Para concluir, acredito que poucas empresas na área de tecnologia e dados poderão fazer um paralelo com a Tesla nesse aspecto, e na verdade a grande maioria das empresas terá um concorrente fazendo algo semelhante e permitindo que as pessoas trabalhem de forma remota.

Se sua empresa é uma fintech por exemplo e você decidir voltar ao modelo 100% presencial é provável que diversas outras fintechs continuem no modelo remoto, o que criaria um caminho fácil para que as pessoas insatisfeitas com essa decisão saiam da empresa.

Apesar disso, muitas pessoas ainda topariam continuar trabalhando de forma presencial. A própria pesquisa mostrou que 36% dos respondentes continuariam trabalhando normalmente se a empresa voltar ao presencial. Então é provável que uma empresa que tome uma decisão dessas aos moldes do titio Elon Musk consiga se ajustar após um impacto inicial, encontrando pessoas dispostas a trabalhar de forma 100% presencial, mas certamente o desafio de atração e retenção desses profissionais será bem mais complexo.

E você, o que acha disso tudo? Concorda ou vê de forma diferente?

Deixe nos comentários sua opinião!

Se quiser se aprofundar mais nos dados da pesquisa, você pode encontrá-los nesse link.

--

--

Gabriel Lages
Data Hackers

Data & Analytics Director at Hotmart, Co-Founder of Data Hackers.